Rocha LG, Souza AQ, Arrieira ICO. Fé e espiritualidade no cotidiano de pacientes pré-operatórios internados na clínica cirúrgica. J. nurs. health. 2020;10(2): e20102003

https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/enfermagem/article/view/17868/11417

ARTIGO ORIGINAL

Fé e espiritualidade no cotidiano de pacientes pré-operatórios internados na clínica cirúrgica

Faith and spirituality in the daily life of preoperative patients admitted to the surgical clinic

Fe y espiritualidad en la vida diaria de pacientes preoperatorios ingresados em la clínica quirúrgica

Rocha, Leonardo Gotuzzo[1]; Souza, Alvenize de Quadros de[2]; Arrieira, Isabel Cristina de Oliveira[3]

RESUMO

Objetivo: conhecer e compreender a forma como a fé e espiritualidade se manifestam na vivência de pacientes que realizarão uma intervenção cirúrgica. Método: estudo qualitativo e exploratório, realizado com 20 pacientes internados em um hospital universitário no Sul do Brasil. As informações foram coletadas em setembro de 2019, através de instrumento semiestruturado e categorizadas por meio de análise temática. Resultados: o medo e a angústia são sentimentos frequentes entre pacientes submetidos a intervenções cirúrgicas. A fé e espiritualidade são recursos importantes de refúgio para amenizar esses sentimentos. Apesar disso, o cuidado espiritual é uma dimensão pouco explorada pelos profissionais de saúde. O amparo espiritual é recebido principalmente de amigos e familiares. Conclusões: sugere-se a inclusão do acolhimento espiritual no plano de cuidados para ampliar a qualidade do cuidado e o vínculo dos pacientes com os profissionais, visto que, compõe o cuidado em saúde.

Descritores: Espiritualidade; Cirurgia geral; Cuidados de enfermagem

ABSTRACT

Objective: to know and understand the way that faith and spirituality manifest itself in the experience of patients who will suffer a surgical intervention. Method: qualitative and exploratory study, with 20 patients from a universitary hospital in the southern Brazil. Information collected in September 2019, through semi-structured instrument. Results: the fear and anguish are frequent feelings among patients undergoing surgical interventions. Faith and spirituality are important refuge resources to ease these feelings. Despite this, spiritual care is a dimension little explored by health professionals. Spiritual support is received mainly from friends and family. Conclusions: the inclusion of spiritual welcome is suggested in care plan, to increase the quality of care and the bond of patient’s to professionals, since it makes up health care.

Descriptors: Spirituality; General surgery; Nursing care

RESUMEN

Objetivo: conocer y comprender la forma en que la fe y espiritualidad se manifiestan en la experiencia de pacientes que realizarán una intervención quirúrgica. Métodos: estudio cualitativo y exploratorio, realizado con 20 pacientes ingresados en un hospital universitario del sur del Brasil. La información se reunió en septiembre de 2019, mediante instrumento semiestructurado y se clasificó mediante análisis temático. Resultados: el miedo y la angustia son sentimientos frecuentes entre los pacientes sometidos a intervenciones quirúrgicas. La fe y espiritualidad son importantes recursos de refugio para aliviar estos sentimientos. A pesar de esto, el cuidado espiritual es una dimensión poco explorada por los profesionales de la salud. El apoyo espiritual se recibe principalmente de amigos y familiares. Conclusiones: se sugiere incluir la recepción espiritual en el plan de atención para ampliar la calidad de la atención y el vínculo entre los pacientes con los profesionales, ya que constituyen la atención sanitaria

Descriptores: Espiritualidad; Cirugía general; Atención de enfermería

INTRODUÇÃO

A espiritualidade é uma dimensão do ser humano que aos poucos vem sendo discutida no meio acadêmico e entre profissionais de saúde, sendo que, frequentemente é confundida com religiosidade. Enquanto a religião engloba um conjunto de crenças exercidas por uma pessoa e compartilhada em grupos,1 a espiritualidade é tudo aquilo que a pessoa considera sagrado e deposita a sua fé, podendo ou não estar associada a alguma crença religiosa.2

Nos últimos tempos é crescente a busca da cura através fé, em virtude da necessidade da associação entre corpo, mente e espírito. Devido a isso, é essencial que a dimensão espiritual seja inserida nos cuidados em saúde centrados no paciente.3 A inclusão da abordagem espiritual no ambiente hospitalar vai ao alcance de uma assistência integral, visto que, a espiritualidade e as crenças dos pacientes são meios importantes para o enfrentamento da doença e de suas repercussões.4

Além de buscar a melhora da qualidade de vida, é sabido que a espiritualidade está associada a uma melhor adesão aos tratamentos propostos nas instituições hospitalares. Nesse contexto, a espiritualidade também contribui para a manutenção da confiança entre paciente e equipe de saúde. Dessa forma, revelando a necessidade de exploração e utilização dessa dimensão como uma importante ferramenta para desenvolver um cuidado singular.5

A fé, enquanto constituinte da espiritualidade, pode ser expressa de diversas formas, seja por ritos, símbolos ou sacrifícios, que realizam um diálogo interno manifestado frequentemente em situações de vulnerabilidade. Em geral, as concepções empregadas em relação à fé demonstram confiança no transcendente como um aspecto para amenizar sentimentos de medo e desamparo. No contexto da saúde, a fé pode ser considerada como um elemento potencializador de esperança em momentos de sofrimento.6

Em um estudo qualitativo com o objetivo de investigar a dimensão espiritual de pacientes em cuidados paliativos, emergiram aspectos religiosos e não-religiosos da espiritualidade, destacando-se práticas espirituais como propulsoras do fortalecimento de recursos internos, da motivação e da esperança. A fé evidenciou-se como elemento fundamental da espiritualidade para os participantes do referido estudo.7

Na necessidade de realização de uma intervenção cirúrgica, frequentemente sentimentos de grande expectativa e medo em relação ao desconhecido são vivenciados. O contexto de uma cirurgia, especialmente relacionado ao período pré-operatório, leva o ser humano a expressar variados sentimentos ao ser inserido em uma nova realidade, que envolve a utilização de aparelhos, linguagem e ambiente desconhecidos e afastados do seu cotidiano.8

A Enfermagem, tendo como foco principal o cuidar em saúde oferecido de forma contínua, considerando as dimensões biopsicossociais e espirituais, possui a necessidade de compreender o quanto a dimensão espiritual integra esse cuidado. Para então, o cuidar em saúde ser conduzido com uma abordagem integral e multidimensional, considerando a singularidade do ser humano.9 Com isso, propõe-se com este estudo conhecer e compreender a forma como a fé e espiritualidade se manifestam na vivência de pacientes que realizarão uma intervenção cirúrgica.

MÉTODO

Trata-se de um estudo qualitativo, de abordagem exploratória, desenvolvido na unidade de internação Clínica Cirúrgica de um Hospital Universitário localizado na cidade de Pelotas/RS.

Para compor o estudo foram selecionados 20 pacientes, no período de realização da presente pesquisa, que estavam internados na unidade citada acima. Como critérios de inclusão foram considerados pacientes que aguardavam a realização de intervenções cirúrgicas eletivas de qualquer natureza, aptos para comunicação verbal e maiores de 18 anos. Já os critérios de exclusão foram considerados pacientes internados na unidade de clínica cirúrgica que já haviam realizado intervenções cirúrgicas, não aptos para comunicação verbal e menores de 18 anos.

A coleta de informações ocorreu no mês de setembro de 2019, por meio da técnica de entrevista, com aplicação de instrumento semiestruturado que englobava dados sociodemográficos e dados relacionados sobre a influência da espiritualidade no processo de adoecimento e a importância dessa abordagem no contexto do cuidado.  As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas na íntegra. Para analisar as informações coletadas foi utilizada a Análise Temática proposta por Minayo, que tolera que os dados sejam explorados em três etapas distintas: 1) pré-análise; 2) exploração do material e 3) tratamento dos resultados e interpretação.10

Para a construção do referencial teórico que posteriormente foi utilizado para a discussão das informações obtidas, realizou-se uma busca de artigos nas bases de dados Scientific Electronic Library Online (SciELO) e Literatura Latino-Americana do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS). Para identificar os artigos pertinentes ao objetivo do estudo, foram buscados artigos publicados nos últimos cinco anos, com os descritores “Espiritualidade”, “Fé e espiritualidade”, “Cirurgia e espiritualidade” e “Espiritualidade e cuidados de enfermagem”.

Aos participantes do estudo foi garantido o anonimato, sendo estes identificados ao longo do estudo pela sigla “PCC”, de paciente clínica cirúrgica, seguido por ordem cronológica de acordo com a realização da entrevista.

O estudo foi fundamentado por princípios éticos embasados pelo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem11 e pela Resolução N.º 466/201212 que trata sobre as diretrizes e normas regulamentadoras sobre pesquisas envolvendo seres humanos. Além disso, o estudo foi analisado e aprovado, através da Plataforma Brasil (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética 17948819.3.0000.5339), pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Católica de Pelotas (UCPel), sob parecer n.º 3.492.268.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Participaram do estudo 20 pessoas, dezessete eram do gênero feminino, com idades entre 27 e 69 anos, e três do gênero masculino, com idades entre 45 e 66 anos. Quanto à escolaridade dos participantes, seis declaram possuir ensino fundamental incompleto, dois com ensino fundamental completo, três com ensino médio incompleto, oito com ensino médio completo e um com ensino superior completo. Em relação ao estado civil, dez participantes se declararam solteiros, sete casados e três viúvos. Referente à religião, dois se declararam evangélicos, quatro espíritas, sete católicos e sete declaram não ter religião.

A seguir, serão apresentadas as categorias construídas após a análise das informações coletadas.

Expressão da fé no enfrentamento de procedimentos cirúrgicos

O processo saúde-doença depende de diversos fatores da vida cotidiana. Os aspectos sociais, biológicos, culturais, educacionais, econômicos e espirituais, quando sofrem interferência no processo de saúde, podem originar um agravo ou uma doença.1 A ampliação do modelo de assistência biopsicossocial contempla as necessidades espirituais, tais como, necessidade de esperança, de sentido e propósito de vida, de se conectar consigo mesmo, com outros e com a transcendência e de sentir amado.13

No enfrentamento do adoecimento, sentimentos de angústia, incapacidade, insegurança e medo são vivenciados.14 Nesta ideia, as influências decorrentes da necessidade de realização de uma intervenção cirúrgica repercutem principalmente no estado emocional dos pacientes, gerando estados de ansiedade e medo, devido ao contexto desconhecido.15

Assim, podemos afirmar que frente à realização de uma intervenção cirúrgica de qualquer natureza, o medo faz parte da condição humana nesses momentos, devido à incerteza sobre o futuro.

[...] por que eu já tive momentos de desespero e choro e isso é normal, não tem quem não passe por isso [...]. (PCC1)

Eu tive medo, por que eu já fiz várias cirurgias, mas eu tenho fé que tudo vai dar certo. (PCC5)

[...] no momento eu fiquei bem tensa assim, bem nervosa, tudo, né, mas aí comecei a pensar em Deus e tudo isso que a gente tem que passar né, não adianta, tem que ter fé em Deus. (PCC7)

Conforme as narrativas, no momento de descobrimento do adoecimento e da necessidade de realizar uma intervenção cirúrgica, sentimentos de medo e angústia se fizeram presentes na vida dos entrevistados. Em contrapartida, a fé e a espiritualidade foram evidenciadas como elementos potencializadores de esperança, levando-os ao aconchego e bem-estar para o enfrentamento desses sentimentos.

Nesse contexto, a dimensão espiritual é intimamente relacionada em conceder sentido e respostas às circunstâncias da vida através de experiências transcendentes, as quais são favoráveis à saúde, uma vez que integra diversos aspectos da vida, como valores, princípios, convicções e forças interiores de maneira singular.16 Este fato pode ser percebido no relato dos entrevistados.

Olha, fé em primeiro lugar, sempre, né [...] confiante, sempre! (PCC2)

[...] eu to enfrentando uns problemas bem difíceis, não só isso aqui [...] e que se não fosse a fé que eu tenho, eu não teria força pra enfrentar. Então, a fé dá força pra gente, dá coragem [...]. (PCC4)

De não me deixar esmorecer nunca, tipo, eu tive um câncer e nunca passou pela minha cabeça em não me curar [...] é uma força que até tu passar por isso, tu achas que tu não tens. (PCC10)

Porque sempre quando a gente tem pensamento positivo, tudo dá certo. [...] eu acredito que tendo fé e tu tendo pensamento positivo, já é uma grande, não digo vantagem, mas ajuda na tua recuperação. (PCC16)

Olha, eu acredito que não só no momento de adoecimento, eu acho que te auxilia no teu dia-a-dia. Nos teus atos, nas tuas atitudes, nos teus semelhantes. (PCC18)

Ainda, os entrevistados afirmaram que a fé/espiritualidade auxilia em diversos aspectos da vida. Nessa ótica, a espiritualidade vem se destacando como uma estratégia para o enfrentamento de diferentes contextos da vida, como de doenças físicas, transtornos mentais ou o luto. Assim, pode-se considerar a espiritualidade como uma ferramenta de coping, de bem-estar, meio de proteção, resignação e uma importante ferramenta de apoio social.17

Com vista à integralidade da assistência à saúde, a fé e a crença do paciente, ou seja, a dimensão espiritual no período pré-operatório deve ser valorizada, pois pode ser considerada como um valor clínico para o paciente.18 Através dessa dimensão, seja de forma isolada ou ligada à religiosidade, a pessoa pode dar novo significado à doença, à dor e ao sofrimento, exercendo influência significativa sobre a vida da pessoa adoecida e daquelas com as quais ela compartilha esse momento.14

Expectativas dos pacientes em relação ao acolhimento da demanda espiritual por parte dos profissionais

Para proporcionar um cuidado integral ao paciente e seus familiares, é importante levar em consideração todas as dimensões do ser humano, visto que participam do processo saúde-doença, o qual é complexo e singular.19 O valor que os pacientes atribuem à sua dimensão espiritual e como gostariam de receber apoio nessa perspectiva, demonstra a importância desse aspecto na construção de um plano terapêutico e de cuidados.20 Esse fato pode ser percebido a partir das falas dos entrevistados, que expressaram a importância dos profissionais abordarem essa dimensão do cuidado, sendo assim, considerada como uma necessidade do ser humano no enfrentamento do adoecimento.

Eu acho muito importante! Por causa que a pessoa chega ali e tá com o pensamento, às vezes, pensamento ruim e por uma conversa boa, sempre ajuda a levantar o astral da pessoa [...]. (PCC15)

[...] eu acho que é importante vocês chegarem nos pacientes e darem uma palavra de conforto, né. A pessoa vai fazer uma cirurgia e fica nervosa, então, uma orientação. (PCC17)

Ah, que parasse e conversasse, saber como a gente tá, dá atenção. (PCC20)

Eu tava muito nervosa quando eu cheguei, e o técnico da tarde tava aqui conversando comigo, me acalmando, sabe. Então, qualquer palavra ajuda, não precisa ser necessariamente sobre religião. (PCC5)

Visto que, a maior parte dos entrevistados expressaram a importância de considerar a espiritualidade ao serem cuidados, o profissional de enfermagem deve entender que as necessidades espirituais, por vezes, são expressas de forma sutil. Cada paciente traz consigo ao ambiente hospitalar, além da patologia, a sua história, contextos e vivências, não apenas do seu adoecimento, mas sobre a sua vida. Um olhar humanizado do cuidado permite que o paciente, ao chegar no hospital, expresse além da sua doença, a sua história de vida e também suas práticas espirituais.21

Em um estudo que objetivou conhecer a abordagem espiritual realizada pela equipe de enfermagem à pacientes em cuidados paliativos, mostrou que os participantes relataram a importância de ter alguém para conversar sobre seus medos, angústias e incertezas ao momento vivenciado. Isso auxiliaria o encontro de respostas acerca desse processo, assim como, o encontro do bem-estar para a preparação para a morte.22

Outro recurso pensado para a abordagem espiritual, consiste na implementação do cuidado espiritual pela equipe de enfermagem desde a internação, através de questionamento sobre a sua espiritualidade. Com isso, o profissional estaria instigando o paciente a conversar acerca dos seus sentimentos, aconselhar, orar junto, incentivar e lutar pela sua vida, assim como, não desistir de tratamentos propostos e proporcionar ânimo para o enfrentamento do adoecimento.22

Por essa perspectiva, conhecer a espiritualidade do paciente e a influência na sua vida é classificada como um ato de humanização por parte dos profissionais, que auxilia na captação das reais necessidades e anseios, dados esses que contribuem para a melhora dos quadros clínicos.20

Nesse sentido, é importante reforçar a relevância de um olhar integral sobre os pacientes e seus familiares, com o objetivo de criar uma assistência a partir de uma visão holística ao paciente. Essa importância da abordagem espiritual, foi evidenciada, principalmente, nas seguintes falas:

Mas sem dúvida, porque tudo que tu fazes com fé, a fé é amor, tudo fica mais fácil. [...]. Onde tem amor no coração tudo flui. (PCC3)

[...] se tu tiveres um amparo do profissional que tá contigo, pra te dizer poucas palavras que te estimulem a te dar força, que te estimule a continuar, é bem-vindo, né! (PCC10)

Eu acho essencial, né! Porque vem conversar com a gente e já explica e aí passa aquela confiança pra gente também, né! (PCC12)

A integração da dimensão espiritual aos cuidados de enfermagem, ao paciente é essencial, pois ao levar em consideração no acolhimento, auxilia diretamente na saúde do paciente, tanto para o enfrentamento de sua doença, como no entendimento do tratamento proposto, gerando qualidade de vida, por prolongar as expectativas do viver.23

Expressão da dimensão espiritual no cuidado à saúde na percepção dos pacientes

Para inserir a dimensão espiritual no processo de cuidado é necessário que os profissionais sejam capacitados com valorização da prática humanizada e integral ao que está sendo cuidado e seus familiares, proporcionando ao paciente o incentivo para a realização de práticas espirituais no ambiente do cuidado.24

A inclusão da dimensão espiritual na assistência à saúde ainda é um desafio aos profissionais de saúde em decorrência da interferência de crenças pessoais ou descrenças acadêmicas na sua implementação. Outro grande problema nesse processo consiste na ausência de estímulo das instituições hospitalares, especialmente por parte da gestão dos locais em que a Sistematização da Assistência de Enfermagem ainda não é implementada.25

Os entrevistados expressaram que a espiritualidade nesse processo ainda é pouco explorada pelos profissionais na prática e quando abordada, é vista de forma velada, mesmo não tendo a necessidade de englobar a religiosidade.

[...] vai dar certo, vai correr tudo bem, tu tá bem, teus exames tão bem, então, tá meio mascarado mas é como se fosse né, uma espiritualidade assim, seria isso. (PCC1)

Eu estava muito nervosa quando eu cheguei e o técnico da tarde estava aqui conversando comigo, me acalmando sabe, então, qualquer palavra ajuda, não precisa ser necessariamente sobre religião. (PCC5)

Quando abordada no contexto do cuidado, a espiritualidade é vista como um suporte favorável ao momento vivenciado pelos entrevistados, proporcionando conforto e segurança no processo saúde-doença, assim, sustentando a necessidade de um olhar ampliado sobre o paciente.

[...] a enfermeira, a médica que veio, já vieram aqui falar de religiosidade, por que eles já estão se doando, é o trabalho deles, elas foram carinhosas comigo, então eu sinto que isso tem a mão de Deus. (PCC3)

[...] todos eles positivos e sempre dizendo que vai dá tudo bem, eu acho que já é uma grande ajuda nisso. Já o modo que eles, né tratam a gente, já é encorajador. (PCC6)

Eu acho que tem muitos profissionais que tem, mas outros tem mais aquele carinho e dedicação pra tratar as pessoas. Eu acho que isso afeta a gente, porque a gente já tá num momento sensível e aí vem uma pessoa com aquela doçura e com aquele jeito de falar. (PCC12)

A abordagem da dimensão espiritual na assistência à saúde é essencial que seja explorada de forma interdisciplinar, visto que, cada membro que participa do processo de cuidado ao paciente, seja o médico, o enfermeiro, o psicoterapeuta, são profissionais capazes de avaliar as necessidades espirituais dos pacientes.26

Um dos recursos pensados para incluir a espiritualidade nos cuidados em saúde consiste na construção de uma anamnese espiritual.  Com isso, proporcionaria aos pacientes uma nova dimensão de relação com o profissional de saúde, além de, transparecer a importância da sua identidade reconhecida e respeitada. O histórico espiritual proporciona dados sobre os recursos disponíveis de apoio dos pacientes dentro da família e da comunidade, permitindo que os profissionais de saúde utilizem essas informações como um subsídio para desenvolver uma abordagem mais centrada na integralidade, proporcionando um comportamento acolhedor junto ao paciente e à sua fé.26-27

Rede de apoio espiritual ao paciente

As redes de apoio sociais são grupos de pessoas que mantém relações e se apoiam entre si, com o intuito de proporcionar ao outro o sentimento de estar sendo cuidado, amado e valorizado em momentos de necessidade.28 Nesse sentido, a rede de apoio espiritual também é vista como um suporte ao paciente no enfrentamento do adoecimento, que por sua vez, possuem diversas vertentes, como mostram os relatos dos entrevistados.

A minha família faz corrente de oração pra mim. (PCC8)

Sim, grupo de oração. (PCC9)

De muitos, tem muitos amigos, muito apoio. (PCC11)

[...] só da minha família. (PCC14)

Ah, meus amigos, minha família. (PCC19)

A prática de oração se mostrou frequente entre as redes de apoio aos entrevistados, advindas principalmente de familiares e amigos, as quais proporcionaram tranquilidade ao momento vivenciado. Indo ao encontro desses resultados, uma pesquisa realizada no interior baiano, que buscou compreender a influência da espiritualidade no enfrentamento da doença falciforme, mostrou que as práticas de orações individuais e em grupos são benéficas, tanto para enfrentamento do adoecimento quanto para questões pessoais.29

A maior parte dos entrevistados relatou receber apoio espiritual dos seus familiares e amigos, interligando esse apoio, principalmente, através de grupos e correntes de orações, mostrando-se benéficas para o enfrentamento do momento vivenciado e para questões pessoais. Além disso, ao serem questionados sobre como se sentiam ao receber esse apoio pelos profissionais da saúde, os mesmos se mostraram receptivos e sociáveis para abordar esse tema.

As gurias estão sempre orando por mim [...]. Faz tempo que elas estavam sabendo. Fazia quase um ano que eu tava esperando essa cirurgia, né. (PCC7)

Colegas de trabalho, pessoas amigas, familiares. Muita gente! (PCC010)

Eu acho que um grupo de apoio, que chegasse e conversasse, seria bom. (PCC13)

É, porque eu sou a favor do livre arbítrio, entendeu, mas se tu queres entrar e conversar sobre a minha espiritualidade, eu vou conversar contigo, mas se tu queres conversar sobre a tua, eu também vou conversar. Eu não tenho problema, acho legal. (PCC14)

Ah, de amigos que frequentam o restaurante onde eu sou cozinheira, eles estão em oração. Eles estão tudo querendo vim, todo mundo se oferecendo. É assim, maravilhoso, sabe, o calor humano. Um abraço às vezes, vale mais que muita coisa. (PCC18)

Nessa perspectiva, o sentido do apoio prestado pelos grupos sociais das mais variadas instituições que os pacientes fazem parte, revelam-se como um importante recurso para o enfrentamento do adoecimento, pois, por ocupar-se de uma organização de auxílio espiritual, o acolhimento, as orações e a atenção voltada ao paciente são considerados como algo que lhe confere conforto, através de recursos emocionais, materiais e de informações concedidas através das relações sociais.30

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É coerente afirmar que a dimensão espiritual faz parte da essência do ser humano, pois todos os entrevistados manifestaram essa dimensão como constituinte de suas vidas. Por muitos, a espiritualidade ainda é confundida com religiosidade, causando confusão no momento em que são abordados sobre a temática. Em contrapartida, seja por intermédio da religiosidade ou não, a espiritualidade é vivida pelos indivíduos e muitos relacionam a sua fé à perseverança para enfrentar o adoecimento.

O medo relacionado à realização de uma intervenção cirúrgica é inevitável pelos indivíduos e a espiritualidade vem sendo apontada como um recurso importante para amenizar esse sentimento e proporcionar fortalecimento para o enfrentamento do processo de adoecimento e de aspectos pessoais. Nesse sentido, o acolhimento espiritual deve fazer parte do plano de cuidados, pois contribui significativamente sobre o tratamento do paciente e, como evidenciado, dependendo do modo como essa abordagem é realizada, os pacientes se sentem confortáveis em conversar sobre esse aspecto da vida.

A realização de oração, especialmente advinda de amigos e familiares, foi o principal meio pelo qual os entrevistados se conectavam à dimensão espiritual. Nessa perspectiva, visto que, a espiritualidade tem influência significativa sobre a vida dos pacientes, nota-se a necessidade de considerar e incluir a espiritualidade aos cuidados à saúde. É essencial que a equipe multiprofissional reconheça esse aspecto como coadjuvante do enfrentamento da doença e recuperação da saúde e, diante disso, sugere-se a inclusão do acolhimento espiritual no plano de cuidados para ampliar a qualidade da assistência e o vínculo dos pacientes com os profissionais, visto que, compõe o cuidado em saúde, o qual é complexo e singular.

As limitações deste estudo relacionam-se com os locais da coleta de dados, a qual se restringiu somente a uma unidade da instituição estudada e também somente a um hospital, não revelando a abordagem do cuidado espiritual de forma mais abrangente, no que diz respeito a outros locais que prestam assistência à saúde. No entanto, estudos em outras localidades do país mostraram resultados semelhantes aos achados sobre a temática abordada.

REFERÊNCIAS

1 Caires ES. Religião e espiritualidade de pacientes internados na clínica médica do Hospital Renato Azeredo em Nanuque – MG [dissertação] [Internet]. Vitória (ES): Faculdade Unida de Vitória; 2016[acesso em 18 maio 2020]. Disponível em: http://bdtd.faculdadeunida.com.br:8080/jspui/handle/prefix/106

2 Evangelista CB, Lopes MEL, Costa SFG, Batista PSS, Batista JBV, Oliveira AMM. Palliative care and spirituality: an integrative literature review. Rev. bras. enferm. [Internet]. 2016[cited 2020 Apr 23];69(3):591-601. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v69n3/en_0034-7167-reben-69-03-0591.pdf

3 Silva MCM, Moreira-Almeida A, Castro EAB. Idosos cuidando de idosos: a espiritualidade como alívio das tensões. Rev. bras. enferm. [Internet]. 2018[acesso em 23 abr 2020];71(5):2461-8. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/reben/v71n5/pt_0034-7167-reben-71-05-2461.pdf

4 Ermelt RC, Zutin TLM, Cardin MA, Grecca SG, Zutin PR, Mazine VB et al. The spiritual history and care given to patients in the hospital. Nursing (São Paulo). 2016;19(220):1386-89.

5 Benites AC, Neme CMB, Santos MA. Significados da espiritualidade para pacientes com câncer em cuidados paliativos. Estud. Psicol. (Campinas, Online). [Internet]. 2017[acesso em 23 abr 2020];34(2):269-79. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/estpsi/v34n2/0103-166X-estpsi-34-02-00269.pdf

6 Cavalcante AH. Experiências formadoras dos romeiros “Do Padim Ciço”: entre a busca de cura, rezas e ritos [tese] [Internet]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2010[acesso em 23 abr 2020]. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/3377

7 Asgeirsdottir GH, Sigurbjörnsson E, Traustadottir R, Sigurdardottir V, Gunnarsdottir S, Kelly E. To cherish each day as it comes: a qualitative study of spirituality among persons receiving palliative care. Support. care cancer. [Internet]. 2013[cited 2020 Apr 24];21(5):1445-51. Available from: https://link.springer.com/article/10.1007/s00520-012-1690-6

8 Rocha NMC, Silva FAA, Rocha RC, Rocha JC, Cabral CVS. Sentimentos vivenciados por pacientes no pré-operatório. Revista interdisciplinar [Internet]. 2016[acesso em 24 abr 2020];9(2):178-86. Disponível em: https://revistainterdisciplinar.uninovafapi.edu.br/index.php/revinter/article/view/903/pdf_325

9 Borges MS, Santos MBC, Pinheiro TG. Social representations about religion and spirituality. Rev bras enferm [Internet]. 2015[cited 2020 Apr 24];68(4):609-16. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v68n4/en_0034-7167-reben-68-04-0609.pdf

10 Minayo MCS (org). Pesquisa Social: Teoria, Método e Criatividade. 1ª ed. Petrópolis: Vozes; 2016.

11 Conselho Federal de Enfermagem (COFEN). Resolução 564/2017, de 6 de novembro de 2017: novo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem [Internet]. Brasília; 2017[acesso em 2020 maio 18]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/resolucao-cofen-no-5642017_59145.html

12 Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Resolução 466, de 12 de dezembro de 2012: diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos [Internet]. Brasília; 2012[acesso em 2020 maio 18]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html

13 Souza W. A espiritualidade como fonte sistêmica na bioética. Revista pistis praxis, teologia e pastoral [Internet]. 2013[acesso em 25 abr 2020];5(1):91-121. Disponível em: https://periodicos.pucpr.br/index.php/pistispraxis/article/view/8684/8357

14 Barros EA. Ajustar-se, criativamente, é preciso: experiências e enfrentamentos em leitos da pré-cirurgia ortopédica. Rev. NUFEN. [Internet]. 2018[acesso em 2020 abr 25];10(2):1-19. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rnufen/v10n2/a02.pdf

15 Santos MMB, Martins JCA, Oliveira LMN. Ansiedade, depressão e estresse no pré-operatório do doente cirúrgico. Referência. [Internet]. 2014[acesso em 2020 abr 25];4(3):7-15. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/ref/vserIVn3/serIVn3a02.pdf

16 Soares AS, Amorim MI. Qualidade de vida e espiritualidade em pessoas idosas institucionalizadas. Rev. port. enferm. saúde mental. [Internet]. 2015[acesso em 2020 abr 25];2(n.esp.):45-51. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/rpesm/nspe2/nspe2a08.pdf

17 Melo CF, Sampaio IS, Souza DLA, Pinto NS. Correlação entre religiosidade, espiritualidade e qualidade de vida: uma revisão de literatura. Estud. pesqui. psicol. (Impr.). [Internet]. 2015[acesso em 2020 abr 25];15(2):447-64. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v15n2/v15n2a02.pdf

18 Jesus ADF. A influência da espiritualidade no cuidado de enfermagem no pré-operatório do hospital municipal de Santarém/PA: uma pesquisa qualitativa [dissertação] [Internet]. São Leopoldo (RS): Faculdades EST;2017[acesso em 25 abr 2020]. Disponível em: http://dspace.est.edu.br:8080/jspui/handle/BR-SlFE/829

19 Reginato V, Benedetto MAC, Gallian DMC. Espiritualidade e saúde: uma experiência na graduação em medicina e enfermagem. Trab. educ. saúde. [Internet]. 2016[acesso em 2020 abr 25];14(1):237-55. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tes/v14n1/1981-7746-tes-14-01-0237.pdf

20 Freire MEM, Vasconcelos MF, Silva TN, Oliveira KL. Spiritual and religious assistance to cancer patients in the hospital contexts. Rev. Pesqui. (Univ. Fed. Estado Rio J., Online). [Internet]. 2017[cited 2020 Apr 26];9(2):356-62. Available from: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=505754109009

21 Freitas CR, Moretto CC. Psicologia da saúde: o acolhimento humanizado na sala de observação de uma unidade pré-hospitalar. Rev. SPAGESP. [Internet]. 2014[acesso em 2020 abr 26];15(2):77-93. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rspagesp/v15n2/v15n2a07.pdf

22 Crizel LB, Noguez PT, Oliveira SG, Bezerra BCC. Espiritualidade no cuidado de enfermagem ao paciente oncológico em cuidados paliativos. Rev. Salusvita (Online). [Internet]. 2014[acesso em 2020 abr 26];37(3):577-97. Disponível em: https://secure.unisagrado.edu.br/static/biblioteca/salusvita/salusvita_v37_n3_2018/salusvita_v37_n3_2018_art_08.pdf

23 Araújo EC. A espiritualidade nos cuidados de enfermagem ao paciente hospitalizado. Rev. enferm. UFPE on line. [Internet]. 2015[acesso em 2020 abr 26];9 Suppl8:1-2. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/10737

24 Pilger C, Macedo JQ, Zanelatto R, Soares LG, Kusumota L. Perception of the nursing staff of an intensive care unit regarding spirituality and religiosity. Ciênc. cuid. saúde. [Internet]. 2014[cited 2020 Apr 28];13(3):479-86. Available from: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/CiencCuidSaude/article/view/19788/pdf_331

25 Silva OEMS, Abdala GA, Silva IA, Meira MDD. Assistência espiritual na práctica da enfermagem: percepção de enfermeiros. Rev. enferm. UFPE on line. [Internet] 2015[acesso em 2020 abr 28];9(8):8817-23. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaenfermagem/article/view/10666/11702

26 Hefti R, Esperandio MRG. O modelo interdisciplinar de cuidados espiritual – uma abordagem holística de cuidado ao paciente. Dossiê: religião e saúde. [Internet]. 2016[acesso em 2020 abr 28];14(41):13-47. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2016v14n41p13/9373

27 Arrieira ICO, Thofehrn MB, Porto AR, Moura PMM, Martins CL, Jacondino MB. Spirituality in palliative care: experiences of an interdisciplinary team. Rev. Esc. Enferm. USP. [Internet]. 2018[cited 2020 Apr 28];52:e03312. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v52/en_0080-6234-reeusp-S1980-220X2017007403312.pdf

28 Silva AO, Loreto MDS, Mafra SCT. HIV na terceira idade: repercussões nos domínios da vida e funcionamento familiar. Revista em pauta: teoria social e realidade contemporânea [Internet]. 2017[acesso em 2020 abr 28];39(15):129-54. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/30380/21546

29 Gomes MV, Xavier ASG, Carvalho ESS, Cordeiro RC, Ferreira SL, Morbeck AD. “Waiting for a miracle”: spirituality/religiosity in coping with sickle cell disease. Rev. bras. enferm. [Internet]. 2019[cited 2020 Apr 29];72(6):1632-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v72n6/0034-7167-reben-72-06-1554.pdf

30 Geronasso MCH, Coelho D. A influência da religiosidade/espiritualidade na qualidade de vida das pessoas com câncer. Saúde meio ambiente: revista interdisciplinar [Internet]. 2012[acesso em 2020 abr 29];1(1):173-87. Disponível em: http://www.periodicos.unc.br/index.php/sma/article/view/227/270

Data de submissão: 20/12/2019

Data de aceite: 12/05/2020

Data de publicação: 20/05/2020



[1] Enfermeiro. Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). E-mail: leonardo_gotuzzor@hotmail.com http://orcid.org/0000-0002-4356-8937

[2] Enfermeira. Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). E-mail: alvenizede@bol.com.br http://orcid.org/0000-0002-2981-1494

[3] Enfermeira. Doutora em Ciências. Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). E-mail: isa_arrieira@hotmail.com http://orcid.org/0000-0003-4607-9255