Zanchetta MS, Santos WS, Moraes KL, Paula CM, Oliveira LM, Linhares FMP, et al. Incorporação do letramento em saúde comunitária ao Sistema Único de Saúde: possibilidades, controvérsias e desafios. J. nurs. health. 2020;10(3):e20103010

https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/enfermagem/article/view/19285

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Incorporação do letramento em saúde comunitária ao Sistema Único de Saúde: possibilidades, controvérsias e desafios*

Incorporation of community health literacy into the Unified Health System: possibilities, controversies and challenges

Incorporación de la alfabetización en salud comunitaria en el Sistema de Salud: posibilidades, controversias, desafíos

Zanchetta, Margareth Santos[1]; Santos, Walterlania Silva[2]; Moraes, Katarinne Lima[3]; Paula, Clarissa Moura[4]; Oliveira, Lizete Malagoni[5]; Linhares, Francisca Márcia Pereira[6]; Coriolano-Marinus, Wanderleya de Lavor[7]; Viduedo, Alecssandra Silva[8]

RESUMO

Objetivo: expor e analisar os argumentos emergidos em debate entre enfermeiros sobre as possibilidades, controvérsias e desafios para a incorporação do letramento em saúde comunitário ao Sistema Único de Saúde. Método: relato de experiência de intervenção-piloto educacional como um curso utilizando transferência de conhecimentos no bojo da colaboração Canadá-Brasil implantada em Brasília, Goiânia e Recife (janeiro de 2020). Resultados: o estado de crítica revelado por 63 participantes englobou o desenvolvimento da liderança social e organizacional, influência nos processos de trabalho uni e interdisciplinar, contribuição para elevar indicadores de qualidade de serviços em letramento em saúde, subutilização dos potenciais de criatividade dos enfermeiros para estabelecerem alianças produtivas com usuários. Conclusão: os argumentos inspiraram recomendações para potencializar autonomia e engajamento dos usuários em programas de cuidados primários à saúde, assim como otimização dos recursos para letramento em saúde, com investimentos na área de saúde digital, somando-se às prioridades para América Latina.

Descritores: Capacitação profissional; Cooperação internacional; Desenvolvimento de pessoal; Letramento em saúde; Liderança

ABSTRACT

Objective: to expose and analyze the arguments that emerged in debate among nurses about the possibilities, controversies and challenges for the incorporation of community health literacy into the Brazilian health system. Method: experience report of educational pilot intervention as a course using knowledge transfer within the context of Canada-Brazil collaboration implemented in Brasília, Goiania and Recife (January 2020). Results: the state of criticism revealed by 63 participants encompassed the development of social and organizational leadership, influence on the uni/interdisciplinary work processes, contribution to raising indicators of quality of services in health literacy, and underutilization of nursers’ creativity potentials, to establish productive alliances with users. Conclusion: the arguments inspired recommendations to enhance autonomy and user’s engagement in primary health care programs, as well as the optimization of resources for health literacy, with investments in the area of digital health adding to the priorities for Latin America.

Descriptors: Professional training; International cooperation; Staff development; Health literacy; Leadership

RESUMEN

Objetivo: exponer y analizar argumentos que surgieron en debate entre enfermeros sobre posibilidades, controversias y desafíos para incorporación de alfabetización en salud comunitaria en el sistema de salud brasileño. Método: informe de experiencia de intervención piloto educativa como curso utilizando transferencia de conocimientos en la colaboración Canadá-Brasil implementada en Brasilia, Goiânia y Recife (enero de 2020). Resultados: el estado de crítica revelado por 63 participantes abarcó desarrollo del liderazgo social y organizativo, influencia en los procesos de trabajo uni/interdisciplinarios, contribución para elevar indicadores de calidad de servicios en alfabetización en salud, infrautilización de potencialidades de creatividad de enfermeras para establecer alianzas productivas con usuarios. Conclusión: argumentos inspiraron recomendaciones para mejorar autonomía y participación de usuarios en programas de atención primaria de salud, así como optimización de recursos para alfabetización en salud, con inversiones en el área de la salud digital que se suman a las prioridades para América Latina.

Descriptores: Capacitación profesional; Cooperación internacional; Desarrollo de personal; Alfabetización en salud; Liderazgo

INTRODUÇÃO

A implantação de um sistema de saúde de qualidade ofertando acesso e cobertura universal à saúde1 e dotado de pessoal qualificado tem sido tema da advocacy política por promotores da saúde em nível global.2-3 Tal cobertura socialmente inclusiva tem o usuário como centro das atividades, sem causar ônus financeiro direto para o mesmo.4 O acesso a tais serviços permanece como tema prioritário1 nas agendas governamentais de saúde e dos esforços comunitários pela comunidade global, justificado pelos indicadores de cobertura insuficiente para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.3 A cobertura universal de saúde em todos os países, independentemente de seu perfil econômico, é vista como um modo de se reimaginar os sistemas de saúde para este novo milênio.3 Admite-se que tal objetivo não seja alcançado até 2030,4 pois inclui implicitamente o acesso equitativo aos serviços de saúde por ser este um importante determinante social da saúde.5-6

O Brasil, com o seu Sistema Único de Saúde (SUS) definido pela Constituição de 1988,7 oferece cobertura universal e, apesar de mudanças, retrocessos e avanços nos últimos anos, somados ao escasso investimento financeiro,8 inspira a inovação de práticas em promoção da saúde, especialmente para outros países da região da América Latina.8 Um dos contingentes profissionais de destaque no SUS é composto por enfermeiros, devido a suas posições de liderança e gestão, sendo reforçadas as políticas de serviços desses profissionais qualificados para serviços de qualidade,9 pela campanha mundial de valorização da Enfermagem, denominada Nursing Now,10 lançada após divulgação Triple Impact Report.11 Neste artigo, a categoria profissional enfermeiro, refere-se aquele que concluiu o programa de bacharelado em Enfermagem tal como designado pela Lei da Regulamentação do Exercício da Enfermagem,  nº 7.498, de 25 de junho de 1986.12

Enfatiza-se que, para incrementar a saúde em nível global e construir economias mais fortes, faz-se necessário investir no empoderamento dos enfermeiros contribuindo-se assim para aumentar a igualdade de gênero, visto ser a Enfermagem majoritariamente composta por mulheres.11 Cumpre ressaltar que, apesar de a questão de gênero ser ressaltada na referida campanha, tal igualdade é apenas uma consequência do protagonismo do profissional enfermeiro, sendo eles, portanto, profissionais qualificados para atuar na educação em saúde.

No entanto, os investimentos para educação de enfermeiros precisam ser intensificados, como destacado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) nas diretrizes da estratégia global para fortalecimento de profissionais da Enfermagem e de Obstetrícia em estreita harmonia com ações para o alcance dos objetivos de desenvolvimento sustentáveis e alinhados com prioridades nacionais de saúde e planos globais de desenvolvimento de ambas as profissões.13 Particularmente, é necessário que ocorra desde a formação em nível de graduação, até a preparacão e o aperfeiçoamento de enfermeiros para atuarem na promoção de saúde, focalizando em Letramento em Saúde (LS), por ser um Determinante Social da Saúde (DSS)2 de relevância global.

LS, em termos gerais, refere-se à capacidade do indivíduo de saber localizar fontes de informações em saúde credíveis, decodificar, compreender, avaliar e aplicá-las para tomada de decisão, relativa à promoção da saúde, prevenção de agravos e à implementação de cuidados de proteção à saúde. Na perspectiva coletiva, o LS comunitário se destaca por sua importância ampla e multidimensional de inserção da capacidade supracitada de uma comunidade de pessoas.2 Ademais, LS comunitário pode sinalizar o quanto organizações e instituições de saúde são responsivas às demandas de seus usuários, que por sua vez são caracterizados por outros DSS (educação, rede de apoio social, condições de trabalho, dentre outros), bem como de suas necessidades específicas de conhecimento em saúde para a tomada de decisão consciente e informada.2 Em suma, os conceitos de LS individual e LS comunitário extrapolam a concepção de competência cognitiva, pois incluem contexto de interações de DSS e mapeamento das condições de saúde, a nível familiar, comunitário e sociedade civil. Assim, trazem à tona, a responsabilidade civil de profissionais que exercem suas atividades em organizações e instituições de saúde como agentes de promoção da saúde.

O LS reveste-se de inegável importância global para o empoderamento das populações vulneráveis, elevando seus níveis de saúde e bem-estar, reduzindo as desigualdades14 também em saúde, assim como responde às metas atuais quanto ao desenvolvimento de recursos humanos e de conhecimentos, inclusive pelo incremento da inovação e da pesquisa.1 Nesse sentido, é preciso inserir os pressupostos do LS na formação dos enfermeiros, seja na educação universitária, seja em atividades de aperfeiçoamento profissional, para instrumentalizá-los para a inovação baseada em evidências na promoção da saúde. Assim, converge com as Orientações Estratégicas para o Fortalecimento dos Serviços de Enfermagem e Obstetrícia (2016-2020),15 e, principalmente no Brasil, quanto à Política de Fortalecimento das Práticas de Educação Permanente em Saúde16 no SUS.

Não se identificou na literatura brasileira explorada na Scientific Electronic Library Online (SciELO) e Google Scholar iniciativas educacionais para o desenvolvimento de competências de enfermeiros para o LS, inclusive para LS digital. A formação para a promoção do LS digital faz parte das habilidades requeridas para que a sociedade se beneficie amplamente da tendência de oferta de serviços digitais de saúde.3 Desde 2009, LS tem sido alvo de pesquisas acadêmicas cuja vitalidade e visibilidade crescentes devem-se ao movimento intelectual liderado pela Rede Brasileira de Letramento em Saúde (REBRALS).

Por conseguinte, decidiu-se contribuir para o fortalecimento da educação e desenvolvimento do potencial de liderança dos enfermeiros. Implementou-se uma iniciativa educacional na modalidade aperfeiçoamento profissional para enfermeiros sobre a temática LS comunitário, por tanto, direcionado para saúde em contexto coletivo. Este manuscrito tem por objetivo expor e analisar os argumentos emergidos em debate entre enfermeiros sobre as possibilidades, controvérsias e desafios para a incorporação do letramento em saúde comunitário ao Sistema Único de Saúde.

MÉTODO

Trata-se de relato de experiência a respeito de um curso denominado Letramento em Saúde: aperfeiçoando conhecimentos para redefinir ações da Enfermagem, enquanto uma intervenção piloto educacional, que convergiu com as metas do Nursing Now,17 tendo sido implementada no Brasil em janeiro de 2020, cujo financiamento possibilitou a participação de uma docente brasileira-canadense por três semanas em atividades pedagógicas desenvolvidas em duas universidades federais na região Centro-oeste e uma na região Nordeste, em colaboração com a REBRALS.

Importante ressaltar que essas regiões foram escolhidas intencionalmente, beneficiando-se da factibilidade da implantação do curso devido à colaboração internacional multíplice iniciada em 2018, almejando contribuir para a formação regional de recursos humanos em Enfermagem diante da sabida escassez de profissionais de qualificação acadêmica elevada.18 O planejamento e a coordenação da iniciativa utilizaram uma abordagem de gestão participativa, com a atuação de nove enfermeiras docentes afiliadas às supracitadas universidades. As atividades conduzidas antes, durante e após a referida iniciativa tiveram por finalidade, ainda, aprofundar o diálogo acadêmico para a definição de acordos de cooperação científica entre as universidades parceiras e apoiar as iniciativas de internacionalização dos Programas de Pós-Graduação em Enfermagem. Enfim, criou-se um contexto favorável ao diálogo das particularidades de visões canadense e brasileira sobre a aceitabilidade da transferência de conhecimento e a expansão de entendimentos sobre a prática inovativa e socialmente inclusiva da Enfermagem baseada em evidências.

Essa intervenção-curso foi desenhada para alcançar os seguintes objetivos educacionais: (a) estimular o pensamento crítico sobre o estado da arte a respeito do conceito de letramento em saúde, que guia a prática e a pesquisa em Enfermagem no Brasil; (b) conceber um mapa conceitual e/ou um marco conceitual aplicável a um projeto de pesquisa, educacional ou de prática clínica; e (c) valorizar a reconceitualização de letramento em saúde como recurso primordial para a promoção da saúde em escala global. O curso teve duração de 30 horas presenciais, com apresentação de cinco prelações, que iluminaram seis horas diárias de trabalho intelectual com os participantes, com os seguintes temas:

Letramento em saúde como um determinante social da saúde: Raízes no modelo canadense de promoção da saúde populacional.

Letramento em saúde digital: Consumidores de saúde autônomos em tempos de informação eletrônica em saúde, abundante e controversa.

O processo Ophelia: movendo o foco sobre habilidades individuais e focalizando no tipo de resposta provida pelos serviços de saúde face aos desafios trazidos pelo letramento em saúde comunitário.

Clarificação e análise conceitual de letramento em saúde: perspectivas brasileiras e internacionais.

Incorporação da inovação baseada em evidências para melhorar letramento em saúde no contexto do SUS: possibilidades, controvérsias e desafios.

Como etapa preparatória, foram traduzidos os textos originais em Inglês para Português, listados abaixo e disponibilizados aos participantes inscritos para se aproximarem do conceito de LS na perspectiva internacional. As leituras permitiram o acesso às seguintes publicações:

- Shanghai declaration on promoting health in the 2030 agenda for sustainable development.2

- Considerations for a new definition of health literacy. Discussion paper.19

- Health literacy toolkit for low and middle-income countries: a series of information sheets to empower communities and strengthen health systems.20

Participaram 63 enfermeiros incluindo três que se deslocaram de outros Estados brasileiros, especificamente para atualizar-se sobre a temática. Os participantes em sala de sala se identificaram enquanto profissionais. O perfil profissional constituiu-se de 38,1% de docentes, 19% de profissionais da atenção terciária, 17,5% de estudantes de mestrado, 4,8% trabalhavam na atenção primária e 20,6% de doutorandos, residentes, pesquisadores, gestores, profissionais da atenção especializada e pós-doutorandos. 52,4% dos participantes representaram a força de trabalho jovem, ou seja, com menos de 10 anos de carreira, enquanto 47,6% tinham 10 anos ou mais de experiência profissional, sinalizando consolidação de carreira. Importante frisar que houve esse equilíbrio de experiências profissionais.

Neste artigo não são apresentadas outras atividades didático-pedagógicas desenvolvidas no curso e concentra-se na última atividade pedagógica proposta em forma de debate sobre o tema “incorporação da inovação baseada em evidências para melhorar o letramento em saúde no contexto do SUS: possibilidades, controvérsias e desafios”. Após uma curta prelação sobre o tema “Inovação baseada em evidências científicas”, os participantes compuseram três grupos, os quais escolheram um dos temas seguintes Possibilidades, Controvérsias e Desafios. Durante 20 minutos e em salas separadas, cada grupo elaborou seus argumentos, exemplos e escolheu um representante para integrar a mesa de debates. Esse momento foi moderado por um participante voluntário e cada membro da mesa teve até cinco minutos para argumentar e três minutos para a réplica. A discussão durou cerca de 70 minutos e foi registrado em arquivo de áudio digital, com autorização verbal dos participantes, tanto para a gravação quanto para a posterior divulgação do conteúdo com finalidade de ensino e publicação científica.

O debate foi seguido por uma sessão de 15 minutos de tribuna livre estimulada pela seguinte pergunta: “como acompanhar e avaliar as ações de Enfermagem para a promoção e a manutenção do letramento em saúde dos grupos populacionais?” Tal sessão de encerramento proporcionou mais interações entre os participantes e as ministrantes, que puderam dar continuidade às discussões suscitadas durante o debate.

Os áudios foram transcritos na íntegra e submetidos a repetidas leituras para melhor apreensão do conteúdo. Posteriormente, a súmula das transcrições foi discutida e analisada, inspirando-se no método de análise temática.21 A interpretação dos discursos apresentados no debate pelos respectivos grupos de participantes em suas cidades encontra-se nos Quadros 1 a 3.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Observou-se que os argumentos são multidimensionais e intencionais quanto à mobilização do capital humano já integrado ao SUS (Quadro 1, 2 e 3). Eles focalizaram o incremento de recursos materiais, o redesenho de processos de trabalho unidisciplinar dos enfermeiros, tanto na prática, quanto na gestão de ações em promoção da saúde e também em colaboração com a equipe multiprofissional. Também sugerem a necessária mudança de perspectiva na qual, ainda hoje, somente se reconhece e se permite o papel passivo do usuário do SUS, passando a enxergá-lo como parceiro engajado e participativo no processo multifásico da promoção do LS.

Como foco multidimensional na promoção da saúde das populações, o LS tem papel fundamental no movimento global de desenvolvimento sustentável, o que foi plenamente compreendido pelos participantes, conforme avaliação imediata conduzida por esses.

Além disto, a criação de um grupo de diálogo por meio de serviço de mensagens instantâneas, criado por sugestão das ministrantes do curso, favoreceu a interação entre os participantes durante a semana de trabalho, tornando mais efetiva a comunicação entre a coordenação e os participantes, fato evidenciado como outro aspecto positivo resultante da troca de informação e do constante diálogo sobre LS.

As atividades nesses grupos podem indicar o surgimento de uma comunidade de prática virtual em LS, que aglutina os participantes devido ao interesse comum em LS, podendo aumentar o diálogo sobre prática e abordagens e oferecer recursos atualizados.22 Doravante, tanto sua produtividade intelectual pode aumentar, como pode sustentar a prática do LS baseada em evidências.

O debate reforçou a ação desses grupos e ainda o faz quanto à manutenção do entusiasmo de acessar o novo conhecimento, compartilhar artigos científicos, documentos e informações sobre eventos, direta e indiretamente associados ao tema do LS, trocar informações sobre pesquisas de Enfermagem em curso e criar parcerias intelectuais entre as coordenadoras e participantes da iniciativa pedagógica.

Os argumentos, exemplos e ideias compartilhadas nos debates animados por enfermeiros docentes, pesquisadores, gestores, com práticas assistenciais em hospitais e na atenção básica de saúde, assim como pós-doutorandos, doutorandos, mestrandos e graduandos em Enfermagem participantes do curso destacaram a situação das oportunidades, da valorização e suas nuances vivenciadas por este contingente profissional. A prática tal como discutida pelos participantes destacou a limitação de recursos materiais, ambientais e organizacionais para o desenvolvimento do potencial técnico, cultural, intelectual e criativo dos enfermeiros, reproduzindo o que se constata em países de todas as Américas.23

O aperfeiçoamento permite ao enfermeiro desenvolver novas atitudes políticas, exercer papel de liderança e estender seu campo de ação. Como pontuado pelos participantes, o aperfeiçoamento em LS pode mostrar o impacto deste conhecimento no bem-estar dos usuários, bem como a importância da adoção de medidas que incentivem a conscientização dos outros profissionais de saúde sobre LS e a incorporação de uma nova atitude na rotina dos serviços. Recente estudo demonstrou que profissionais de saúde reconhecem que níveis insuficientes de LS exigem maior desempenho, principalmente, nas habilidades de comunicação.24

Quadro 1: Possibilidades de incorporação de letramento em saúde no SUS. Brasília, Goiânia, Recife (Brasil), 2020

Elementos do debate: possibilidades

-       Agregar LS como eixo temático nas políticas de saúde e como indicador na avaliação de performance de qualidade do SUS.

-       Alinhar práticas de educação para saúde voltadas para LS comunitário e digital.

-       Analisar a pertinência e disponibilidade de recursos materiais para definir estratégias de promoção do LS digital.

-       Criar condições técnicas para produção de conhecimentos, sustentando a prática baseada em evidências sobre LS comunitário.

-       Dar visibilidade ao trabalho inovador e criativo da Enfermagem como estratégia de trabalho de suporte ao desenvolvimento do LS individual.

-       Educar a população sobre fontes credíveis de informação em saúde, modo de análise/interpretação, promovendo a tomada de decisão segura e informada.

-       Esclarecer diferenças conceituais entre transmissão de informação em saúde, processo de educação em saúde e ações integradas para promoção do LS comunitário.

-       Estabelecer parceria público-privado e sensibilização de gestores para incrementar inovações em tecnologias educativas em programas de LS.

-       Incorporar LS nos debates em conferências municipais, estaduais e nacionais de saúde.

-       Institucionalizar o uso de mídias eletrônicas na prática sistematizada da promoção do LS individual, familiar e comunitário.

-       Mapear territórios quanto aos níveis de alfabetização e associá-los aos de LS para identificação de prioridades e potencialidades, com finalidade de promoção do LS comunitário.

-       Otimizar educação em serviço sobre o LS, por meio da problematização de casos na assistência e no diagnóstico situacional na gestão.

-       Potencializar a consciência política da nova geração de enfermeiros, com foco na defesa do SUS e nos direitos dos usuários para corroborar com o empreendedorismo social associado à promoção do LS comunitário.

-       Reconhecer o potencial do enfermeiro como produtor de conhecimento de novas tecnologias geradas no contexto do SUS por meio de patentes.

-       Reforçar a questão da comunicação interprofissional, e com usuários, como meta de segurança dos mesmos, por meio do autocuidado e tomada de decisão informada.

-       Usar evidências pela incorporação de instrumentos de mensuração do LS na porta de entrada do SUS.

Fonte: elaborado pelos autores, 2020.

Quadro 2: Controvérsias de incorporação de letramento em saúde no SUS. Brasília, Goiânia, Recife (Brasil), 2020

Elementos do debate: controvérsias

-       Assimetria de benefícios mútuos nas parcerias científico-tecnológicas público-privadas para inovações em LS digital.

-       Culpabilização do profissional não reativo ao LS ao invés de culpabilizar instituições e sistema de saúde.

-       Discordância sobre alocação de recursos financeiros, materiais e humanos para incorporação e uso das tecnologias de informação em saúde para os programas de LS no SUS.

-       Disposição para reduzir a unidirecionalidade da transmissão dos conhecimentos em saúde com a incorporação da cultura popular em saúde.

-       Distribuição equânime da oferta de tecnologia de comunicação para efetivo alcance do LS nos territórios de maior necessidade.

-       Equívoco na avaliação objetiva do nível de LS dos usuários com percepção distorcida do potencial de compreensão dos mesmos.

-       Entendimento sobre a limitação da formação do enfermeiro responsivo ao LS por ideias consolidadas sobre educação em saúde.

-       Ingerência no registro de patentes e de propriedade intelectual restringindo inovações em educação em saúde por enfermeiros.

-       Nível de conscientização sobre a responsabilidade do profissional enfermeiro e de sua postura frente ao desconhecimento de estratégias de incorporação do LS na prática.

-       Obstáculos para o enfermeiro se alinhar ao papel dos usuários empoderados pelo LS.

-       Resistência do enfermeiro na mudança de práxis para incluir usuários no processo de construção de práticas de promoção de LS.

Fonte: elaborado pelos autores, 2020.

Como um argumento consensual entre os participantes, já destacado pela Organização Mundial de Saúde,4 o fortalecimento dos sistemas de cuidados primários em saúde para sua plena funcionalidade requer profissionais motivados, equipados com recursos e quando requeridos, dotados de infraestrutura e de equipamentos. As condições de trabalho, a satisfação no trabalho e a retenção dos profissionais de Enfermagem tendem a afetar a qualidade da assistência provida à clientela. O envolvimento da clientela no desenvolvimento de parcerias com os profissionais para o alcance dos resultados de saúde pretendidos somente ocorre quando há confiança na qualidade e na eficácia dos serviços recebidos.4 Desse mesmo modo, a transmutação para instituições de saúde sensíveis e responsivas às demandas de letramento em saúde da clientela deve ser subsidiada pela educação para promover o LS individual e comunitário, exigindo a revisão de políticas institucionais e públicas.20

Nem o vasto acesso aos meios de comunicação em massa, nem o acesso à enorme quantidade de informação em saúde pode assegurar o resultado da compreensão das informações e seu uso crítico e seguro pela população. Eis porque enfermeiros precisam ter condições de aperfeiçoamento profissional e prática adequada para o estabelecimento de colaborações multidisciplinares e aliar-se com à clientela para promover saúde. A contribuição dos enfermeiros para o desenho também de um ecossistema para saúde digital necessário para a América Latina25 é inquestionável no tocante ao LS digital comunitário. 

As dificuldades de promoção do LS comunitário são aguçadas em países das Américas Central e do Sul que acolhem imigrantes, refugiados e apátridas, trazendo consigo o desafio das diversidades linguísticas e das culturas de saúde já documentadas na América do Norte.26 Nesse contexto, o LS, como objeto de apropriação da prática educativa dos enfermeiros, traz em si a possibilidade de equidade de oportunidades para o entendimento das questões e informações complexas em saúde, necessárias para a sociedade se proteger, se cuidar, ser protegida e ser cuidada.

A expansão do aperfeiçoamento dos enfermeiros na área de saúde digital e LS digital pode permitir a implantação estruturada de consultas de Enfermagem a distância, já implantadas em mais de 13 países. Sua inegável contribuição refere-se à ampliação do acesso e à extensão do alcance da cobertura universal dos serviços de saúde.27 Serviços de saúde digital são estratégias para promoção do LS, cuja implantação efetiva nos países da América Latina requer parcerias universitárias para pesquisas e capacitação/aperfeiçoamento,25 inclusive para o LS comunitário, tal como amplamente explicitado no debate.

A constatação na mídia social dos comportamentos de proteção à saúde e de prevenção de agravamento no enfrentamento diário da COVID-19 ilustra como LS guia a tomada de decisão dos indivíduos, independentemente de seus níveis de escolaridade. Assim, identificamos exemplos de iniciativas dos enfermeiros na prática educativa e em ações profissionais com criatividade, capacidade inventiva, liderança cidadã e responsabilidade social. Enfermeiros buscam aprender sobre como se apropriar de linguagem para a comunicação midiática neste momento de oportunidades para revolucionar ideais sobre proteger e prevenir.

Adequadamente qualificados e treinados, enfermeiros integram os pressupostos do LS à sua prática profissional e contribuem para modificar o comportamento do usuário, que passa a demandar mais dos serviços de saúde. Dessa forma, incrementam a responsividade das instituições de saúde, pois o LS digital demanda que os sistemas de saúde ofereçam acesso a serviços digitais que funcionem e que sejam adequados às necessidades individuais dos usuários.28 As pessoas mais idosas, pessoas com baixa escolaridade e, ainda, aquelas com acesso restrito aos serviços de saúde por questões geográficas experimentam desigualdades em saúde que podem ser atenuadas quando os serviços, dotados de infraestrutura adequada, otimizam seu LS digital.29 Ressaltamos que tais serviços requerem avaliação imediata do resultado de seu uso pelos usuários, já que sua inexistência poderia distorcer os indicadores de resolutividade desses serviços.28

Quadro 3: Desafios de incorporação de letramento em saúde no SUS. Brasília, Goiânia, Recife (Brasil), 2020

Elementos do debate: desafios

-       Adicionar LS como um novo indicador para a avaliação de serviços do SUS.

-       Apropriar-se do discurso administrativo da gestão de recursos financeiros, da avaliação de eficácia e de benefícios para o SUS.

-       Articular a produção científica em LS com sua prática, traduzindo-a para projetos de promoção do LS baseados em evidência. 

-       Coadunar interesses em política de saúde com a escolha de tecnologias educativas comprovadamente eficazes na promoção do LS comunitário, estendendo seus impactos sociais na elevação do LS digital.

-       Concentrar a atenção no planejamento, implementação e avaliação de atividades de educação em saúde e LS.

-       Considerar a singularidade dos usuários no uso de instrumentos tecnológicos para viabilizar o LS individual.

-       Contrabalançar os efeitos da cultura institucional de restrita valorização profissional com os benefícios trazidos pelo aperfeiçoamento profissional como alternativa para inovação na prática.

-       Disponibilizar meios para os usuários acessarem, terem suporte para interpretar e utilizarem a informação em saúde (escrita, oral ou digital).

-       Educar os usuários, profissionais e gestores para entenderem LS como um “meio-fim” de operacionalização e incremento da produtividade prevista pelo modelo de atenção do SUS.

-       Elevar o nível de criticidade para a aplicação do conhecimento científico para integração da qualidade no gerenciamento do cuidado.

-       Fomentar a discussão em ambiente acadêmico e assistencial sobre inovação, criatividade e empreendedorismo na área de promoção do LS baseado em evidências.

-       Incorporar LS como um determinante social da saúde nos programas de formação e educação em serviço para questionar conhecimentos e práticas consolidadas em educação em saúde. 

-       Ressignificar a escuta sensível como estratégia de promoção do LS comunitário reconhecendo a cultura popular em saúde e as potencialidades comunitárias.

-       Reorganizar os fluxos de trabalho integrando pressupostos do LS destacando autonomia e tomada de decisão pelos usuários.

-       Sensibilizar a equipe multiprofissional para apropriar-se do LS em suas práticas.

-       Sobrepujar a concepção equivocada de que inovação na assistência primária em saúde restringe-se a tecnologia dura.

Fonte: elaborado pelos autores, 2020.


Quatro pontos principais suscitaram reflexões sobre possíveis recomendações. Primeiro, existe distorção ou conhecimento parcial da consideração dos diversos tipos de evidências que fundamentam a prática baseada em evidência30 justificada pelo entendimento do termo evidência, restrito apenas aos resultados de pesquisa científica. Segundo, o conhecimento sobre a evolução de determinantes sociais da saúde devido às mudanças sociais das populações globais requer atenção dos enfermeiros para atualização contínua. Terceiro, existe entendimento limitado sobre o papel do enfermeiro enquanto educador e promotor de saúde, já que o compartilhamento de informações de modo informal se confunde com educar para a saúde. E, por último, existe equívoco em diferenciar os termos educação em saúde e LS, que merece ser objeto de discussão em programas educacionais na Enfermagem.

Considerando os argumentos emanados do debate sobre LS em um sistema universal de saúde, recomendamos que os gestores de serviços e os docentes disseminem amplamente as publicações da Organização Pan-americana da Saúde/OMS sobre as novas políticas, diretrizes e recomendações na área da promoção da saúde. Assim, enfermeiros, enquanto líderes de equipe e gestores, poderão manter suas equipes atualizadas e instrumentalizadas para as mudanças de práticas. Consequentemente, em parceria com universidades, poderão ser criados e implantados programas de educação em serviço sobre LS usando diferentes tecnologias de ensino, inclusive ensino a distância. Isso se refere ao debatido tema sobre a informalidade do fazer (ensinar para saúde) que justifica a atualização de conhecimentos em teorias, modelos e tecnologias mundialmente conhecidos e utilizados no processo sistemático de educar para a saúde.

Portanto, propõe-se que os programas acadêmicos de Enfermagem estabeleçam parcerias com os serviços, a fim de instrumentalizar os enfermeiros na assistência e na docência de novos conhecimentos. Juntos, podem planejar cursos com ênfase na Enfermagem Global da promoção de saúde e LS, elevando a possibilidade da alta qualificação profissional exigida para um sistema integrado de oferta de serviços de qualidade. Ao adotarem uma nova cultura intensa de compartilhamento de espaços e incorporação de outras vozes ampliadas, tais parceiros estariam favorecendo a inclusão em grupos de pesquisa, em conselhos colegiados nos serviços e a valorização de expertises profissionais em diferentes cenários de atuação. Como resultado, acreditamos que, “aprendendo” juntos, poder-se-ia, ademais, desmistificar o uso do método científico da área do LS, estimulando pesquisas quanti-qualitativas em parcerias também com a comunidade.

CONCLUSÕES

As argumentações no debate foram de suma relevância para que a Enfermagem latino-americana possa desenvolver normas e protocolos para a prática baseada em evidências. No tocante à promoção da saúde e elevação do LS comunitário e da diversidade cultural da região latino-americana, enfatizamos a necessidade da geração de conhecimentos científicos enraizados também na cultura local de saúde de cada país e nas nuances da prática profissional dos enfermeiros.

Revelou-se que o LS ainda se configura como conhecimento novo na prática clínica dos enfermeiros nas cidades do Nordeste e Centro-Oeste do Brasil em que a iniciativa pedagógica foi implementada. A experiência mostrou que esse tipo de iniciativa é capaz de promover a familiarização dos profissionais com o LS e estreitar a distância entre academia e prática, qualificando o enfermeiro que compartilha conhecimentos de saúde com usuários do sistema de saúde. Por fim, vale enfatizar a importância do fato de que o aperfeiçoamento em LS converge para o fortalecimento do profissional enfermeiro como líder da equipe que promove o bem-estar dos usuários. Conclui-se que é mister a conscientização dos demais profissionais da equipe de saúde para a adesão ao LS, visando a reconceitualização do ensinar para promover saúde numa perspectiva de globalidade e integralidade.

Esta intervenção piloto lançou a base para uma futura pesquisa de avaliação do impacto social a longo prazo do curso para conhecermos as experiências, e consequências da incorporação do LS comunitário na prática profissional dos participantes. Com intuito de investigar as experiências relacionadas ao aproveitamento de oportunidades, estratégias e métodos na incorporação do conceito, assim como os resultados do enfrentamento das dificuldades. Outros temas de interesse são as iniciativas de tradução de conhecimentos e a inovação implícita em tais ações profissionais. A pesquisa internacional, multicêntrica será implantada ao menos 18 meses após o curso (ano de 2021) considerando as limitações atuais para implantação de novas atividades decorrentes das prioridades relacionadas à pandemia.

REFERÊNCIAS

1 Organização Pan-americana da Saúde (OPAS). Organização Mundial da Saúde (OMS). Agenda de saúde sustentável para as Américas 2018-2030: um chamado à ação para a saúde e o bem-estar na região [Internet]. 2017[acesso em 2020 ago 13]. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/49172/CSP296-por.pdf?sequence=1&isAllowed=y

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7 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações determinadas pelas Emendas Constitucionais de Revisão nº 1 a 6/94, pelas Emendas Constitucionais nº 1/92 a 91/2016 e pelo Decreto Legislativo nº 186/2008 [Internet]. Brasília: Senado Federal. 2016[acesso em 2020 ago 13]. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf

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Data de submissão: 26/07/2020

Data de aceite: 05/11/2020

Data de publicação: 19/11/2020



* Global Affairs Canada- Faculty Mobility Program (Government of Canada) - 2019 e Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal – Bolsa de Pós-doutorado.

[1] Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Daphne Cockwell Escola de Enfermagem. Universidade Ryverson. Canadá (CAN). E-mail: mzanchet@ryerson.ca http://orcid.org/0000-0003-2321-9438

[2] Enfermeira. Doutora em Ciências da Saúde. Universidade de Brasília (UnB). E-mail: walterlaniasantos@gmail.com http://orcid.org/0000-0001-6266-8901

[3] Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Universidade Federal de Jataí (UFJ). Goiás (GO), Brasil. E-mail: katarinnemoraes@gmail.com http://orcid.org/0000-0001-6169-0461

[4] Enfermeira. Universidade Ryverson. Canadá (CAN). E-mail: clarissa.mpaula@gmail.com http://orcid.org/0000-0002-3009-5923

[5] Enfermeira. Doutora em Ciências da Saúde. Universidade Federal de Goiás (UFG). Goiás (GO), Brasil. E-mail: lizete.malagoni@gmail.com http://orcid.org/0000-0002-1055-1354

[6] Enfermeira. Doutora Nutrição. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pernambuco (PE), Brasil. E-mail: marciapl27@gmail.com http://orcid.org/0000-0001-9778-5024

[7] Enfermeira. Doutora em Saúde da Criança e Adolescente. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pernambuco (PE), Brasil. E-mail: wandenf@gmail.com http://orcid.org/0000-0001-7531-2605

[8] Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Universidade de Brasília (UnB). E-mail: aleviduedo@hotmail.com http://orcid.org/0000-0002-3529-3814