ARTIGO ORIGINAL

Desafios da atuação do enfermeiro frente à violência sexual infanto-juvenil

Challenges of nurses' performance in the face child and adolescent sexual violence

Retos del desempeño del enfermero ante la violencia sexual infantojuvenil

Silva, Patrick Leonardo Nogueira da[1]; Veloso, Giulia Silveira[2]; Queiroz, Bruna Cavalcanti[3]; Ruas, Edna de Freitas Gomes[4]; Alves, Carolina dos Reis[5]; Oliveira, Valdira Vieira de[6]

RESUMO

Objetivo: identificar a percepção de enfermeiros quanto aos desafios enfrentados durante sua atuação frente à violência sexual infantojuvenil. Método: estudo descritivo, exploratório, qualitativo, realizado com seis enfermeiros atuantes na Estratégia de Saúde da Família. As entrevistas semiestruturadas foram gravadas, transcritas e os depoimentos discutidos conforme a Análise de Conteúdo. Resultados: foi observado insegurança e dificuldade de agir em situações de violência sexual contra crianças e adolescentes. É destacada pelos profissionais a falta de articulação intersetorial, de um fluxograma de encaminhamento desses pacientes por meio de protocolos e de uma rotina específica pelos serviços da gestão municipal. Conclusão: os enfermeiros não se sentiram habilitados a lidarem com casos de violência sexual infantojuvenil em decorrência da não formação acadêmica voltada para esta área durante a graduação e, possivelmente, por falta de habilidade para intervir especialmente pela ausência de políticas de educação permanente no município.

Descritores: Delitos sexuais; Criança; Adolescente; Enfermagem; Saúde da família

ABSTRACT

Objective: to identify the perception of nurses regarding the challenges faced during their work in relation to child and adolescent sexual violence. Method: descriptive, exploratory, qualitative study, conducted with six nurses working in the Family Health Strategy. A semi-structured interview was used, whose statements were recorded, transcribed and discussed according to Content Analysis. Results: the statements showed insecurity and difficulty to act in children and adolescent’s sexual violence. The professionals highlighted the lack of intersectoral articulation, of a flowchart for referring these patients through protocols and of a specific routine by the municipal management services. Conclusions: the nurses didn’t feel qualified to deal with cases of child and juvenile sexual violence due to the lack of academic training in this area during graduation and, possibly, due to a lack of ability to intervene, especially because of the absence of continuing education policies in the municipality.

Descriptors: Sex offenses; Child; Adolescent; Nursing; Family health

RESUMEN

Objetivo: identificar la percepción de enfermeras sobre los desafíos que enfrentan durante su actuación ante la violencia sexual infantojuvenil. Método: estudio descriptivo, exploratorio, cualitativo, realizado con seis enfermeras que trabajan en la Estrategia de Salud Familiar. Se utilizó una entrevista semiestructurada cuyas declaraciones fueron grabadas, transcritas y discutidas según el Análisis de Contenido. Resultados: en los testimonios se evidenció inseguridad y dificultad para actuar en situaciones de violencia sexual infantojuvenil. Se destaca por los profesionales la falta de articulación intersectorial, de un flujograma de derivación de estos pacientes por protocolos y de una rutina específica por parte de los servicios de gestión municipal. Conclusiones: las enfermeras no se sentían capacitadas para atender casos de violencia sexual infantojuvenil debido a la falta de formación académica en esta área durante la graduación y, posiblemente, por falta de capacidad de intervención, especialmente por la ausencia de políticas de educación continua en el municipio.

Descriptores: Delitos sexuales; Niño; Adolescente; Enfermería; Salud de la familia

INTRODUÇÃO

A violência pediátrica e hebiátrica é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como toda e qualquer forma de agressão de cunho emocional e/ou física, abuso sexual, negligência ou tratamento negligente, comercial ou outras formas de exploração, possibilitando em danos potenciais ou reais à saúde do público-alvo, à sobrevivência, ao desenvolvimento ou dignidade no contexto de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder.1 O Sistema de Informação de Agravos e Notificações foi criando pelo Ministério da Saúde (MS), em consonância com o Estatuto da Criança e do Adolescente, no intuito de registrar obrigatoriamente os eventos em nível local, estadual e federal.2 A notificação objetiva interromper condutas violentas no âmbito familiar e por parte de qualquer agressor, inibindo recidivas.3

A violência é considerada um grave problema na área da saúde, de cunho social, oriunda de fatores que se tornam empecilhos para que haja o enfrentamento e, consequentemente, a sua resolução, tais como: a falta de denúncias decorrente do medo de denunciar; a omissão da criança, do adolescente ou da própria família, seja por medo, coação ou trauma, por exemplo; a inadequação profissional de sua postura na tentativa de resolver o caso, sendo esta oriunda da pouca experiência prática ou da associação psicoemocional com o caso vivenciado.4 Esses fatores que dificultam o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, muitas vezes permeado pelo medo e pelo desconhecimento da real magnitude e impacto desse fenômeno na sociedade, pode repercutir de maneira negativa e definitiva na vida das famílias e das crianças e adolescentes que foram vítimas. É necessária a realização de capacitações e treinamentos para que os enfermeiros possam compreender melhor o problema levando em consideração sua complexidade e suas diferentes formas de manifestação.5

Ainda, o profissional de enfermagem que lida com a saúde pública deve portar o conhecimento necessário sobre a violência em crianças e adolescentes de modo a prestar um atendimento de qualidade, bem como ser resolutivo e implementar um plano de cuidados à vítima e à família. Assim sendo, a busca por respostas aos impasses para a legitimação da retirada da violência sexual contra crianças e adolescentes, a compreensão do processo de ocorrência deste evento, bem como a formação de uma equipe profissional que seja capaz de atuar com competência e compromisso para que haja o enfrentamento destes casos. Diante da magnitude mundial desse problema, tendo em vista o aumento da prevalência das vítimas, é esperado que se discuta os possíveis caminhos e soluções que contribuam para que o enfermeiro e toda a equipe de saúde possam identificar os casos de maus-tratos neste público-alvo mais vulnerável que são as crianças e os adolescentes.5

Nesse intervalo de tempo decorrido entre o caso ocorrido e o momento presente, grande parte das pessoas ainda não sabe como intervir nos casos de violência sexual de modo a informar às autoridades competentes sobre o ocorrido. Isso decorre do medo de se envolver, bem como da descrença da resolução do evento, pois muitos deles não são legalmente constados e acabam sendo arquivados em virtude de não existir um alicerce legal e policial satisfatório tendo em vista a investigação e apuração dos fatos. Contudo, a subnotificação repercute em danos graves podendo ser fatais à vítima. Uma das maiores dificuldades para o profissional de saúde é a sua inserção no ambiente inóspito do contexto família da vítima, pois o agressor utiliza de subterfúgios, tais como ameaças, chantagens, coerção, violência física e psicológica contra as pessoas que lhe oferecem perigo, para esconder o crime. Sendo assim, muitos evitam ou omitem o fornecimento de informações sobre o caso no intuito de se resguardar fisicamente e moralmente.6

A equipe de enfermagem, supervisionada pelo enfermeiro, encontra-se envolvida diretamente no cuidado à criança vítima de violência.4-6 O cuidado, que é a base essencial desta categoria profissional, enfoca na qualidade de vida da pessoa atendida, o qual exige dos profissionais um esforço constante quanto ao aperfeiçoamento do conhecimento tendo em vista a complexidade e a fragilidade humana sob a ótica da integralidade e da responsabilidade.5

Desse modo, o cuidado à criança, em qualquer situação de enfermidade, diferencia-se do cuidado ao adulto por suas especificidades biopsicossociais, que devem ser abordadas de forma singular, ou seja, realizar, individualmente, a notificação do evento, bem como encaminhá-la para o hospital de referência para a realização do acompanhamento ambulatorial e para o Conselho Tutelar e, em seguida, acionar o Centro de Referência Especializada em Assistência Social (CREAS) e realizar o Boletim de Ocorrência por meio de uma Unidade Policial, em cada fase de seu crescimento e desenvolvimento. Nas situações emergenciais, como no caso da violência sexual, a criança é quase sempre a principal vítima por apresentar maior vulnerabilidade, bem como as mulheres e os idosos, necessitando, portanto, de uma atenção especial da equipe multiprofissional por meio do cuidado integral. Dadas as peculiaridades biológicas e psicológicas e as características próprias desse grupo populacional, são cruciais recursos materiais, financeiros, local específico e também recursos humanos capacitados para esse fim.7

Sendo assim, a problemática do presente estudo fundamentou-se na seguinte questão norteadora: quais os desafios, na percepção de enfermeiros, enfrentados durante a sua atuação frente à violência sexual infantojuvenil? Por conseguinte, o presente estudo teve como objetivo identificar a percepção de enfermeiros quanto aos desafios enfrentados durante sua atuação frente à violência sexual infantojuvenil.

MATERIAIS E MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo, exploratório, com abordagem qualitativa, desenvolvido na cidade de Francisco Sá, localizada na região norte de Estado de Minas Gerais. O município é composto por nove equipes de Estratégias de Saúde da Família (ESF), sendo cada uma gerida por um enfermeiro responsável. A amostra do estudo foi composta por seis destes enfermeiros atuantes nas ESF. Foram adotados os seguintes critérios de inclusão para participação na pesquisa: (1) ser enfermeiro da Atenção Primária a Saúde (APS); (2) não apresentar limitações ou restrições fonoaudiológicas (deficiência auditiva e/ou vocal), tendo em vista a gravação oral dos depoimentos; (3) tempo de profissão mínima de seis meses; e (4) encontrar o enfermeiro na ESF em até três tentativas.

Foi enviada uma carta de apresentação, juntamente com uma cópia do projeto de pesquisa, e um Termo de Consentimento Institucional (TCI) à Coordenação de APS da Secretaria Municipal de Saúde de Francisco Sá para autorização do estudo. A instituição foi devidamente orientada quanto às diretrizes da pesquisa e autorizou a realização do estudo por meio da assinatura do TCI de modo a estar ciente. A coleta de dados foi realizada no primeiro semestre de 2019, durante os meses de março e maio, pelo pesquisador responsável, as quais foram previamente agendadas no local de trabalho dos profissionais.

Foi utilizada uma entrevista semiestruturada e um roteiro de elaboração própria como instrumento de coleta de dados. O roteiro de entrevista foi composto pelas seguintes questões norteadoras: (1) São desenvolvidas estratégias de prevenção contra a violência sexual? Quais? (2) Existe estratificação de risco de famílias com risco potencial para violência contra criança e adolescente? (3) Você se considera capacitado a atender uma criança ou adolescente vítima de violência sexual? (4) O que você considera necessário para melhorar sua atuação nessas situações? Durante a realização das entrevistas, foram coletados os dados de identificação dos participantes, sendo eles: sexo, faixa etária e tempo de atuação na ESF.

Para a captação e armazenamento dos depoimentos dos participantes, fez-se o uso de um celular com gravador MP3. O término da entrevista foi determinado por meio da saturação dos dados. Os depoimentos foram transcritos na íntegra, categorizados, analisados e discutidos com a literatura científica por meio da Análise de Conteúdo,8 percorrendo três fases: (1) pré-análise, (2) exploração do material e (3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação.

Após análise das entrevistas dos participantes, foram estabelecidas duas categorias de análise para este estudo, sendo elas: “Autopercepção da competência profissional quanto à identificação e prevenção dos casos de violência sexual de crianças e adolescentes” e “Dificuldades vivenciadas no enfrentamento e prevenção dos casos de violência sexual de crianças e adolescentes”.

Os participantes foram devidamente orientados quanto às diretrizes do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para participação voluntária da pesquisa. Foram garantidos o sigilo e o anonimato dos participantes do estudo. Os depoimentos foram identificados por meio de pseudônimos, elegidos pelo próprio pesquisador responsável, referentes a nomes de flores, sendo estes: Orquídea Azul, Camélia, Copo de Leite, Tulipa Lilás, Chuva de Prata e Hibisco.

O estudo obedeceu aos preceitos éticos estabelecidos pela Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), a qual regulamenta a realização de pesquisa envolvendo seres humanos.9 Em atendimento à legislação vigente, o projeto de pesquisa foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde e Desenvolvimento Humano Santo Agostinho de Montes Claros (CEP FASA), sob parecer consubstanciado nº 3.285.212, de 25 de abril de 2019, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética nº 10662918.0.0000.9087.

Este artigo é proveniente da monografia intitulada “Os desafios da atuação do enfermeiro frente à violência sexual infantojuvenil” a qual foi apresentada ao Departamento de Enfermagem da Faculdade de Saúde e Desenvolvimento Humano Santo Agostinho de Montes Claros/FASA. Montes Claros (MG) em 2019. A monografia está disponível em http://www.biblioteca.fasa.edu.br/repositorio/

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Perfil do participante

Dos entrevistados, dois eram do sexo masculino (33,3%) e quatro eram do sexo feminino (66,7%). Quanto à faixa etária, quatro participantes apresentavam 28, 30, 31 e 35 anos de idade (66,7%) e dois apresentavam 37 e 42 anos (33,3%). A idade média geral era de 34,0 anos (DP = ±5,329). Com relação ao tempo de atuação profissional, um participante apresentava menos de um ano de atuação (16,6%), outro apresentava de 7 a 12 anos (16,6%) e outro de 13 a 18 anos (16,6%), sendo que a metade dos participantes tinha entre um e seis anos de atuação (50,2%), com tempo médio de 4,3 anos (DP = ±2,081).

Autopercepção da competência profissional quanto à identificação e prevenção dos casos de violência sexual de crianças e adolescentes

Foi possível identificar, durante a realização das entrevistas, aspectos relevantes quanto à concepção dos enfermeiros sobre sua capacidade de atuação em casos de violência sexual. Os depoimentos a seguir demonstram a insegurança e dificuldades de agir diante das situações de violência sexual infantojuvenil:

Eu acho extremamente difícil. Por mais que a gente fale que tenha essa informação, que a gente consegue estar identificando na prática mesmo é muito difícil da gente está pegando isso. (Camélia)

[...] às vezes era possível notar que havia alguma coisa errada, mas não conseguíamos chegar até lá e de qual forma faríamos essa abordagem e que a gente já consegue isso. Muitas vezes para a gente poder chegar ficamos até sem jeito, de como chegar, como abordar. (Copo de Leite)

Igualmente, o trabalho prestado na comunidade pelo enfermeiro da ESF e pelo agente comunitário de saúde é extremamente importante e necessário, pois frequentam e conhecem o cenário e os personagens do convívio cotidiano com a vítima. Assim sendo, a obtenção de informações configura uma medida essencial para o aperfeiçoamento das condutas profissionais de modo que os casos sejam investigadas, observados e detectados, podendo levar à confirmação do diagnóstico de abuso sexual, e que na maioria das vezes, podem estar mascarados por anos.6 Confronta-se com essa realidade o sentimento da equipe de não estar habilitada para lidar com situações de violência, o que pode levar à invisibilidade de casos. A identificação precoce é de extrema importância para a prevenção de novas ocorrências, pois favorece a proteção à vítima e o cuidado à família.10

Mesmo que se declarem com conhecimento suficiente para identificar situações de violência, os profissionais destacam em seus depoimentos a seguir a falta de articulação dos serviços.

[...] sim, a gente tem essa condição de identificar a violência. A dificuldade maior é ao identificar essa violência identificar a rede, porque na verdade eu acredito que não possui uma rede clara, estruturada de identificar para onde vamos encaminhar os casos. Então muitas vezes fazemos de forma aleatória ou às vezes a gente procura o CRAS e o Conselho Tutelar. (Orquídea Azul)

Foram identificadas dificuldades dos profissionais em trabalhar, pensar e agir em rede, fato que evidencia que o trabalho desses profissionais ainda está demarcado por ações isoladas e desarticuladas. Ressalta-se que não é obrigação somente do enfermeiro sobre a questão da violência infantojuvenil, mas sim de uma equipe multiprofissional. Ainda, a dificuldade de se operacionalizar a abordagem interdisciplinar tão necessária ao enfrentamento da violência. Essas dificuldades podem estar relacionadas com outras variáveis, tais como: a ausência de um conteúdo específico sobre violência sexual durante a sua formação acadêmica; a organização das universidades quanto os cuidados com os adolescentes; a organização das equipes, da rede de justiça e das Organizações Não-Governamentais (ONG) quanto os cuidados com os adolescentes.11

Destaca-se, por conseguinte, que é imprescindível conhecer os diversos serviços que compõem a rede de atenção e prevenção da violência como um passo importante para a articulação das ações intersetoriais. Os serviços de saúde são organizados em níveis de atenção (Atenção Primária, Secundária e Terciária) cujos quais são articulados entre si e cada profissional apresenta total autonomia para realizar a devida conduta que julgar pertinente tendo em vista a resolução do caso.11 O profissional da enfermagem enxerga a necessidade do trabalho em rede, como afirmado durante a entrevista:

Eu acho que seria fundamental que o município possuísse uma rede estruturada para que ao identificar um caso de abuso sexual a gente tivesse esse apoio para que pudéssemos enxergar mais resolutividade, pois a gente vê que mesmo os casos que a gente passa tem pouca resolutividade então é necessário que a gente veja que tem sim uma resolução e que teria esse apoio para dar mais segurança ao profissional e também capacitações. (Orquídea Azul)

Outros estudos também corroboram esses dados, ao identificarem dificuldades dos profissionais no manejo da violência contra a criança e ao adolescente, e se deram principalmente pela ineficiência do serviço de saúde, desde a falta de capacitação e inexistência de protocolos até a ausência de rotinas específicas para atuação.11-12 Sobre a educação permanente dos profissionais de saúde após a formação, o MS disponibiliza cursos de especialização e aperfeiçoamento online gratuitos no intuito de qualificar a equipe para o manejo dessas vítimas de violência sexual. As instituições de saúde devem proporcionar incentivos à realização desses cursos a fim de prover um atendimento resolutivo e satisfatório. Neste estudo, um dos enfermeiros afirma no depoimento a seguir sobre a ineficiência de incentivos a cursos e profissionais especializados ocasionando a insegurança no atendimento.

Do tempo que eu estou aqui na cidade eu nunca vi uma educação continuada. Na minha profissão eu já presenciei educações em saúde com esse tema. Em outro município que eu trabalho nós tivemos uma capacitação sobre esse tema, mas mesmo assim, não me sinto completamente capacitado. Eu vejo que na Saúde da Família não existe não, precisa muito, mas infelizmente não existe. (Chuva de Prata)

Sendo assim, a prestação de assistência deve ser ampliada, tendo em vista a premissa da integralidade de modo a não se restringir apenas a casos confirmados de violência sexual. Este evento é de notificação compulsória, mesmo quando suspeito, pois a maior dificuldade está nos casos subnotificados. As ações de promoção para o enfrentamento destes casos, bem como as medidas de prevenção, devem estar atreladas na agenda do Programa Saúde na Escola (PSE), porém para que isso ocorra, as atividades da equipe de ESF devem estar articuladas ao serviço disponibilizado pelo PSE. Com relação às estratégias de prevenção realizadas, os entrevistados também demonstraram agir de forma individualizada dentro do contexto de acordo com o depoimento a seguir:

Programas específicos para essa situação nós não temos. Para minimizar, tem as educações de saúde, das equipes, dos Agentes Comunitários de Saúde. E esse tema é um tema obrigatório que precisamos fazer que é a Promoção da Paz e a Prevenção da Violência. (Tulipa Lilás)

Os gestores de saúde, sendo eles municipais, estaduais ou federais, são responsáveis por incentivar e oferecer cursos de capacitação e atualização aos profissionais de saúde com maior especificidade sobre a prevenção da violência sexual, de modo a favorecer uma melhor destreza destes profissionais para com as vítimas, bem como facilitar a condução do desfecho do evento. A literatura científica informa que qualquer solução que seja utilizada no intuito de cessar a violência deve ter em mente de que se trata de um evento de maior complexidade cujo qual pode ser modificada a depender das relações interpessoais do dia a dia da vítima. Sendo assim, a propedêutica deve incluir uma equipe multiprofissional no contexto familiar, sendo, ao mesmo tempo, abrangente e específica.13 Sendo assim, em um dos depoimentos fornecido a seguir por uma das enfermeiras deste estudo, foi relatado a oferta de Educações em Saúde, porém nenhuma era direcionada para o manejo profissional da violência sexual de crianças e adolescentes, o que dificulta a condução do processo de trabalho com essas vítimas.

Tem as Educações em Saúde. Mas específico para a violência sexual não tem. (Copo de Leite)

Apesar de existirem meios que objetivam a busca pela prevenção dos maus-tratos, o que se observa é que essas diligências se dão isoladamente e sem estratégias ativas entre os setores da saúde o qual somam essas práticas em uma ambiência maior.14 Com isso, ainda são poucos os programas ministeriais conhecidos pelos profissionais e aderidos pelas gestões municipais, estaduais e federais a fim de propiciar meios para o combate da violência sexual, bem como para a qualificação profissional. Na literatura científica há pouco detalhamento teórico de programas e manuais que reportam sobre a violência sexual, fluxograma de atendimento e prevenção do evento. No depoimento a seguir, o participante aborda o PSE apenas como forma educacional, de modo a não contribuir com a prevenção e propiciar um contexto reduzido.

Sim, existe. Saúde na Escola, por exemplo, é uma forma de educar e não prevenir. São palestras direcionadas a educar crianças que o adulto não pode tocar e que desconhecidos não podem abraçar ou chegar perto. É basicamente isso que se fala. (Hibisco)

Dificuldades vivenciadas no enfrentamento e prevenção dos casos de violência sexual de crianças e adolescentes

Nesta categoria, foi citada principalmente a necessidade do apoio de uma equipe multiprofissional para detectar esses casos na ESF. Isso é evidenciado nos depoimentos a seguir:

Eu acho que não, eu tenho dificuldade até mesmo na abordagem [...]. (Camélia)

Não, não me considero capacitado. Nós não estamos preparados [...]. (Chuva de Prata)

O estudo atesta a conjectura de que o enfermeiro, juntamente à equipe multiprofissional de saúde, manifestam dificuldades ao se defrontar na prática clínica com crianças e adolescentes vitimados de modo a se deparar no epicentro de conflitos que envolvem razões biopsicossociais e ético-legais, o qual exige o aperfeiçoamento do conhecimento com relação aos aspectos legais visando uma assistência eficaz e eficiente quanto às necessidades humanas.5

A verdade é que a gente se sente insegura em lidar com essa situação, sempre que tem a suspeita eu não me sinto aquele profissional totalmente capacitado para resolver esse problema. Na verdade, eu sinto que não sou tão capacitada assim. (Orquídea Azul)

As equipes de Saúde da Família mostram-se insatisfeitas com os resultados de sua atuação, visto que reconhecem a existência de uma carência por mecanismos de amparo que possam conferir segurança e eficiência durante a assistência às crianças, vítimas de violência, e suas famílias. Sob tal égide, as enfermeiras interpretam que para intervir nos casos de violência, além do conhecimento atualizado, a atuação deve ser interdisciplinar, sendo essa uma prática multiprofissional, bem como uma articulação intersetorial, ou seja, envolver os representantes da gestão local (municipal), estadual e federal. A postura das enfermeiras encontrasse nos depoimentos a seguir:

É necessária mais capacitação, mais treinamento de outros profissionais para ajudar a gente. Nós não vemos muito isso na graduação, nem na prática direito. (Tulipa Lilás)

[...] falta capacitações, que devemos estudar mais sobre o assunto. Sempre achamos que não vai ter esse caso na nossa área e acabamos deixando de lado e quando a gente vê que realmente é necessário esse conhecimento, pois existem casos a gente acaba possuindo essas dificuldades. (Camélia)

Além disso, há a manifestação advinda dos profissionais de enfermagem quanto à necessidade sentida por eles de serem treinados e capacitados periodicamente com o conhecimento específico para este tipo de atendimento tendo em vista a prestação de uma assistência equânime e de qualidade, sendo esta diferenciada e individualizada, de modo a ajudar no restabelecimento e na melhora da evolução do prognóstico da vítima de violência sexual. Os profissionais informam não estarem aptos para esse tipo de atendimento haja vista a dificuldade na identificação da vítima sem o devido apoio de uma equipe multiprofissional estruturada.

Eu acho que seria fundamental que o município possuísse uma rede estruturada para que ao identificar um caso de abuso sexual a gente tivesse esse apoio para que pudéssemos enxergar mais resolutividade [...]. (Orquídea Azul)

Portanto, atuar na saúde coletiva requer desenvoltura e espírito de liderança nas tomadas de decisões. Os casos de violência apresentam um teor de complexidade por envolver outras variantes que muitas das vezes não estão no nosso campo de visão e no nosso domínio tornando-se casos de difícil atendimento, visto que geralmente ocasionam intenso desgaste psicoemocional. Salienta-se ainda a precarização das condições de um atendimento efetivo à vítima oferecida pelo sistema de gestão vigente. Isso reitera o desinteresse do profissional em se envolver com a vítima e sua família justificando a dificuldade do atendimento.15 Os depoimentos seguintes expressam a dificuldade na atuação de uma realidade com poucos subsídios e sobrecarga de exigências ao profissional:

Por completo não, eu preciso de ajuda. Quando eu tenho este caso na minha área eu já tenho que acionar a equipe multidisciplinar, entra o médico da unidade, o psicólogo e o assistente social do NASF para poder ajudar porque é bem complexo. Nós sozinhos como enfermeiros não estamos preparados para liderar esse caso. (Tulipa Lilás)

O enfermeiro vivencia muitas realidades difíceis ao trabalhar diretamente com a violência, sendo elas: identificar a vítima o qual requer um olhar clínico mais apurado; as condições éticas que envolvem a não exposição da família e da criança, de modo a repercutir na sobrevivência dos envolvidos decorrente de perseguição ou retaliação advinda do agressor; o não investimento em atualizações e capacitações dos enfermeiros e de toda equipe multiprofissional; e a sobrecarga de atribuições culminando no adoecimento de toda a equipe envolvida (Síndrome de Burnout). Todos estes fatores podem contribuir para que os casos fiquem mascarados.3

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista que este é um estudo local, realizado apenas em um município, destaca-se que um dos limites de estudo é a baixa quantidade de participação de todos os enfermeiros da gestão local, sendo este um trabalho técnico cujo qual viabiliza o aperfeiçoamento técnico do profissional, conferindo-lhe maior resolubilidade do caso.

Por meio desse estudo, foi possível identificar a dificuldade dos profissionais no enfrentamento da situação de violência sexual em crianças e adolescentes. Possibilitou observar a necessidade da busca de preparo, cabendo ao enfermeiro a identificação de famílias com potencial risco e intervir por meio da equipe multiprofissional com o intuito de se evitar danos à vítima. Os profissionais, portanto, devem estar preparados quanto à identificação de comportamentos inadequados de modo a fazer a notificação do evento. Além disso, é de responsabilidade da Rede de Atenção Primária à Saúde, além das famílias, escolas, do poder judiciário, das ONG, das três esferas de Governo (municipal, estadual e federal), dentre outras instâncias, traçarem estratégias para desenvolvimento de políticas sociais de enfrentamento à violência.

Em se tratando dos fatores dificultadores para a implementação da intervenção em casos de violência sexual na população pediátrica e hebiátrica, foram apontados, principalmente, pelos enfermeiros: a razão do silêncio estabelecido na família, o receio vindo dos profissionais por terem dúvidas no tangível à resolução do problema, bem como na tomada de atitude pelos respectivos órgãos, a fim de serem resolutivos em ocorrências dessa magnitude e a carência de apoio institucional e governamental para lidar com essas famílias.

Conclui-se, por conseguinte, que os resultados encontrados com a análise estimulam novos pensamentos e ideias a respeito do mecanismo da violência infantojuvenil, bem como na implantação de um plano de cuidados para as vítimas e suas famílias. Assim, com capacitações e treinamentos, faz-se necessário maior apoio governamental para que os profissionais da enfermagem possam se sentir mais seguros ao atuar nesses casos.

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Data de submissão: 27/08/2020

Data de aceite: 22/04/2021

Data de publicação: 26/04/2021



[1] Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Montes Claros, Minas Gerais (MG). Brasil (BR). E-mail: patrick_mocesp70@hotmail.com ORCID: 0000-0003-2399-9526

[2] Faculdade de Saúde e Desenvolvimento Humano Santo Agostinho de Montes Claros (FASA). Montes Claros, Minas Gerais (MG). Brasil (BR). E-mail: giuliasveloso@gmail.com ORCID: 0000-0003-4409-4670

[3] Faculdade de Saúde e Desenvolvimento Humano Santo Agostinho de Montes Claros (FASA). Montes Claros, Minas Gerais (MG). Brasil (BR). E-mail: brunacavalcantiq@gmail.com ORCID: 0000-0002-0954-8633

[4] Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Montes Claros, Minas Gerais (MG). Brasil (BR). E-mail: efgomesruas@yahoo.com.br ORCID: 0000-0002-4654-0817

[5] Faculdade de Saúde e Desenvolvimento Humano Santo Agostinho de Montes Claros (FASA). Montes Claros, Minas Gerais (MG). Brasil (BR). E-mail: carolina.calreis@yahoo.com.br ORCID: 0000-0003-2107-6306

[6] Faculdade de Saúde e Desenvolvimento Humano Santo Agostinho de Montes Claros (FASA). Montes Claros, Minas Gerais (MG). Brasil (BR). E-mail: valdira_oliver@hotmail.com ORCID: 0000-0003-2020-2489

 

Como citar: Silva PLN, Veloso GS, Queiroz BC, Ruas EFG, Alves CR, Oliveira VV. J. nurs. health. 2021;11(2):e2111219482. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/enfermagem/article/view/19482