ARTIGO ORIGINAL

O papel do cuidador formal de idosos: facilidades e dificuldades no exercício do cuidado

The role of the elderly formal caregiver: facilities and difficulties in the exercise of care

El papel del cuidador formal del anciano: facilidades y dificultades en el ejercicio del cuidado

Fernandes, Aline da Rocha Kallás;[1] Araujo, Meiriele Tavares;[2] Velloso, Isabela Silva Cancio;[3] Mattar e Silva, Tauana Wazir [4]

RESUMO

Objetivo: conhecer os desafios vivenciados pelos cuidadores formais nas práticas cotidianas do cuidado ao idoso. Método: estudo descritivo-exploratório, cujas entrevistas foram realizadas entre dezembro de 2016 e maio de 2017 com 18 cuidadores formais, captados a partir da associação de cuidadores do estado de Minas Gerais seguido da técnica de bola de neve, e analisadas a luz da análise de conteúdo. Resultados: foram encontradas três categorias temáticas: Papel da enfermagem para a prática cotidiana do cuidador formal de idosos, limites (in)visíveis do cuidado ao idoso entre os cuidadores de idosos e a enfermagem, e cuidador visto como profissionais da enfermagem - autopercepção do cuidador. Conclusões: a crescente demanda por cuidados ao idoso e a busca por recursos torna necessário a delimitação de atuações que garanta sua qualidade e o exercício legal da profissão do cuidador como uma velha-nova ocupação que comprime atividades de vários profissionais, principalmente da enfermagem.

Descritores: Idoso; Cuidadores; Enfermagem; Trabalho; Cuidados de enfermagem

ABSTRACT

Objective: to know the challenges experienced by formal caregivers in the daily practices of everyday care. Method: descriptive-exploratory study, whose interviews were conducted between December 2016 and May 2017 with 18 formal caregivers, captured from the association of caregivers of the state of Minas Gerais followed by the snowball technique, and analyzed considering the content analysis. Results: three thematic categories were found: Nursing role in the daily practice of formal elderly caregivers; (In)visible limits of elderly care between elderly caregivers and nursing; and Caregiver seen as nursing professionals - caregiver's self-perception. Conclusions: the growing demand for elderly care and the search for resources make it necessary the delimitation of performances to ensure its quality and the legal exercise of the caregiver's profession as an old-new occupation that compresses activities of various professionals, especially nursing.

Descriptors: Aged; Caregivers; Nursing; Work; Nursing care

RESUMEN

Objetivo: conocer los desafíos vividos por los cuidadores formales en las prácticas cotidianas del cuidado de ancianos. Método: estudio descriptivo-exploratorio, cuyas entrevistas fueron realizadas entre diciembre de 2016 y mayo de 2017 con 18 cuidadores formales, captados de la asociación de cuidadores del estado de Minas Gerais seguidos por la técnica de bola de nieve, y los datos manejados por análisis de contenido. Resultados: se encontraron tres categorías: Papel de la enfermería en la práctica cotidiana de los cuidadores formales de ancianos; Límites (in)visibles del cuidado al anciano entre cuidadores de ancianos y enfermería; y Cuidadores vistos como profesionales de enfermería – autopercepción del cuidador. Conclusiones: la creciente demanda de cuidados a los ancianos y la búsqueda de recursos hacen necesario delimitar acciones que garanticen su calidad y el ejercicio legal de la profesión de cuidador como una vieja-nueva ocupación que comprime las actividades de varios profesionales, especialmente de enfermería.

Descriptores: Anciano; Cuidadores; Enfermería; Trabajo; Atención de enfermería

INTRODUÇÃO

O envelhecimento populacional é um fenômeno sociodemográfico mundial e que, no Brasil, caracteriza um cenário de expressivas preocupações no que concerne às políticas sociais, econômicas ou de saúde. O aumento da longevidade é acompanhado por maior demanda dos serviços e cuidados de saúde para o idoso e pela necessidade de mudanças das organizações, a fim de atender a população idosa na qual prevalecem as doenças crônicas e/ou degenerativas, condições incapacitantes e, consequentemente, de perda de autonomia.1-2

No âmbito das políticas de saúde, no Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI), foi uma estratégia para garantir ao idoso a promoção do envelhecimento ativo e saudável, bem como a atenção integral e integrada de saúde.3 Mediante as perspectivas sociais e econômicas brasileiras da atualidade, caracterizadas por famílias reduzidas em membros e por vínculos de trabalho estendido, sendo necessários novos arranjos de cuidados aos idosos e de cuidados paliativos, uma vez que a maioria dos óbitos da população idosa brasileira ocorre em hospitais, e não em casa, em despeito a explícita preferência dos idosos por morrer em domicílio.4

Adiciona-se a esse contexto, a pouca disponibilidade de vagas em Instituições de Longa Permanência (ILPIs) públicas para idosos, que ainda apresentam-se polarizadas em instituições filantrópicas com rígidos critérios socioeconômicos de admissão para poucas vagas, bem como em instituições privadas, de custo pouco acessível às famílias. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada entre 2006 e 2009 em um estudo foram identificados 109.447 leitos, dos quais aproximadamente 90% encontravam-se ocupados. O mesmo estudo apresenta que os estados com maior proporção de idosas residentes em ILPI são Minas Gerais (MG), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Rio Grande do Sul (RS) e Goiás (GO).5

Nesse contexto de poucos recursos disponíveis, reforçado pela legislação brasileira que preconiza o cuidado do idoso como uma responsabilidade de sua família,3,6 o cuidado domiciliar se apresenta como uma estratégia para a promoção dos cuidados ao idoso. A gestão do cuidado domiciliar ao idoso envolve os papéis da família e da enfermagem na oferta de cuidados básicos, instrumentais e especializados ao encontro do atendimento de suas necessidades.7 

Os cuidadores formais de idosos são profissionais contratados para prestar auxílio ao idoso no desempenho das atividades básicas e instrumentais de vida diária, visando à manutenção da saúde e a minimização do agravo de doenças.8 Esses profissionais podem desenvolver suas atividades de cuidado no domicílio do idoso, em hospitais ou em ILPIs, e assumem funções pré-determinadas, como: cuidar de idosos semidependentes e dependentes, auxiliar/monitorar os idosos em suas atividades de vida diária, e conduzi-los e/ou incentivá-los a realizar autocuidado e lazer.9-10

Segundo a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) e o Ministério do Trabalho e Emprego, a ocupação de cuidador de idosos foi incluída no mercado de trabalho brasileiro por meio do código 5162-10, em 03 de janeiro de 2003, pertencendo à família intitulada Cuidadores de Crianças, Jovens, Adultos e Idosos (código 5162). É importante ressaltar que o código 3222, referente aos técnicos e auxiliares de enfermagem, não compreende a família supracitada, embora a contratação desses profissionais como cuidadores não seja impedida, posto que ao cuidador sejam designadas atividades realizadas de forma sumária e ampla.10

Assim, converge-se no cenário do envelhecimento a necessidade de profissionais para prestação do cuidado diante da falta de recursos para fazê-lo, o que tem promovido um crescimento da contratação de cuidadores de idosos e sua expressiva inserção no mercado de trabalho, apesar da falta de políticas de regulamentação profissional, limites profissionais e regras acerca da formação desses profissionais. A atuação dos cuidadores formais de idosos é caracterizada pela realização de práticas que atravessam o exercício profissional da enfermagem, nutrição, fisioterapia e terapia ocupacional, uma vez que não há uma especificação das suas atribuições e, por conseguinte, a profissão permanece sem legitimidade técnica, ética e legal.11-12

As diferenças entre a prática do cuidador e a de profissionais de saúde, especificamente a enfermagem, são apresentadas na CBO e no Guia Prático do Cuidador, no formato de advertência para o ato de cuidar não caracterizar o cuidador como um profissional de saúde, não devendo o cuidador executar procedimentos técnicos que sejam de competência dos profissionais de saúde, tais como: aplicações de injeção no músculo ou na veia, realização de curativos complexos, instalação de soro e colocação de sondas. As atividades que o cuidador realizará devem ser planejadas junto aos profissionais de saúde e com os familiares.12-13

Nesse contexto, o enfermeiro apresenta-se como parte da formação desse profissional, seja de forma formal ou informal, uma vez que cabe ao enfermeiro, no contexto da transferência de cuidado, ensinar ao familiar e/ou ao cuidador responsável pelo idoso os cuidados a serem realizados em domicílio. Assim, no contexto de formação profissional, o enfermeiro é o único que possui o conhecimento necessário para o cuidado a ser prestado pelo cuidador. Entretanto,  a Resolução do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) nº 582/2018 veda a participação do enfermeiro na formação técnico-científica dos cuidadores de idosos, evidenciando as discussões existentes acerca das atribuições delegadas ao cuidador formal de idosos, uma vez que suas responsabilidades, na prática, perpassam as ações do enfermeiro, sobretudo quando se trata da realização de procedimentos privativos da equipe de enfermagem e, especificamente, do enfermeiro, por serem de maior complexidade.13

Diante do exposto, o presente artigo tem como objetivo conhecer os desafios vivenciados pelos cuidadores formais nas práticas cotidianas do cuidado ao idoso.

MATERIAIS E MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo-exploratório de abordagem qualitativa, realizado em Belo Horizonte, MG, Brasil. O tipo de pesquisa exploratória objetiva desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias por meio de questões de pesquisa formuladas para proporcionar uma visão geral, de tipo aproximativo, acerca de determinado fato.14 Enquanto, a pesquisa descritiva permite a descrição das características de determinada população ou fenômeno assim como o estabelecimento de relações entre variáveis estabelecidas.15 A abordagem qualitativa, por sua vez, volta-se para o aprofundamento da compreensão do objeto de estudo e contempla a dimensão sociocultural do fenômeno.16 Tais características de ambos os tipos e abordagem de pesquisa são coerentes ao objeto deste estudo proporcionando a possibilidade de se explorar, descrever e estabelecer possíveis relações entre os limites de atuação do cuidador formal de idosos e o profissional de enfermagem no contexto do cuidado ao idoso.

Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas. Os participantes entrevistados foram 18 cuidadores formais de idosos, identificados pela sigla “CI” para garantir o anonimato, que recebiam remuneração pela prestação do cuidado ao idoso, com no mínimo um ano de experiência na área, independentemente da idade e sexo e que foram contratados pela família do idoso, pelo próprio idoso ou por ILPIs.

A captação e seleção dos cuidadores ocorreram por meio de indicação da Associação Mineira de Cuidadores de Idosos de Minas Gerais (ACI-MG) bem como de cuidadores formais sugeridos da sua rede de contatos. Utilizou-se a técnica da “Bola de Neve”, útil para estudo realizado com determinado grupo cujo acesso seja difícil, uma vez que se utiliza de redes de referência, ou seja, contatos. Inicialmente, foi feito contato com pessoas de perfil de interesse para a pesquisa.17

Após essa etapa, solicitou-se que essas pessoas indicassem novos participantes da sua rede social e assim consecutivamente. Desta forma, o tipo de amostragem “Bola de Neve” apresenta-se como um processo contínuo de coleta de informações com um conjunto de contatos potenciais, e que pode ser finalizado com base no critério da saturação dos dados.17 A saturação se faz presente quando não há mais o fornecimento de elementos entre campo de pesquisa e pesquisador para o aprofundamento de uma teoria.18

Todos os cuidadores formais de idosos que foram convidados a participarem da pesquisa aceitaram o convite. Não houve recusa e desistência dos cuidadores, portanto nenhum dado foi perdido. O período da coleta de dados ocorreu entre dezembro de 2016 a maio de 2017.

Todos os dados coletados foram submetidos à análise de conteúdo, uma técnica que contribui para a compreensão de opiniões e ações percebidas num contexto de dados textuais e/ou simbólicos. Ao analisar o material, o pesquisador classifica-os em categorias que ajudam a compreender o que está implícito nos discursos. A referida análise pode ser feita em várias fontes de dados, desde notícia de jornais a relatos de entrevistas.19

Essa técnica possui alguns elementos de abordagem ao ser instrumentalizada como: objetividade, sistematicidade, dimensão quantitativa (tratamento estatístico dos dados) e qualitativa (identifica temas e significados). Dessa forma, trata-se de um dispositivo de pesquisa que contribui para a compreensão de opiniões e ações percebidas num contexto de dados textuais e/ou simbólicos. Além disso, a análise de conteúdo converte materiais brutos em dados susceptíveis ao tratamento científico, permitindo, com base na quantificação, substituir as meras impressões do pesquisador em procedimentos padronizados, sistematizados e objetivos.19-20

Esse método compreende um conjunto de técnicas de análises das comunicações que dispõe de métodos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens. As diferentes etapas de análise de conteúdo organizam-se em torno de três pólos: a pré-análise; a exploração do material; e por último o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. A primeira fase, denominada pré-análise, consiste em sistematizar as ideias preliminares, mediante três passos: a escolha dos documentos a serem submetidos à análise, a elaboração de hipóteses e a formação de indicadores que embasam a conclusão de uma interpretação.20 A segunda fase compreende a exploração do material por meio da criação de categorias e identificação das unidades de registro e de contexto. É uma etapa primordial, pois possibilita ou não a magnitude das inferências e interpretações. Nesta fase, as hipóteses e o referencial teórico orientam o estudo aprofundado das informações.

A terceira e última fase se refere ao momento em que os resultados, as inferências e a interpretação serão trabalhadas. Destacam-se as informações para a análise reflexiva e crítica, resultando em interpretações inferenciais.

Após a leitura e interpretação dos dados foram identificadas e criadas três categorias de análise: “O papel da enfermagem para a prática cotidiana do cuidador formal de idosos”, “Os limites (in) visíveis do cuidado ao idoso entre os cuidadores de idosos e a enfermagem” e “O cuidador visto como profissionais da enfermagem - percepção do cuidador”. Esses temas foram analisados à luz da literatura científica disponível.

Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa da UFMG, parecer n°.1.470.988/2016. A participação na pesquisa foi voluntária e realizada após assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido, sendo obedecidos todos os requisitos destacados na Resolução 466/2012 para regulamentação ética de pesquisas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os cuidadores entrevistados possuíam idade entre 25 e 65 anos, sendo a média de idade de 50 anos. Cuidam há aproximadamente 2 anos dos mesmos idosos, os quais têm em média 78 anos, e são dependentes. Uma quantidade significativa de cuidadores (50%) trabalha na residência, sendo o regime de trabalho o Regime de Pagamento Autônomo (RPA). Esses profissionais recebem entre um e dois salários-mínimos para cumprirem uma carga horária de 24 horas ininterruptas, em turnos diurno e noturno. A jornada de trabalho dos cuidadores em questão chega a extremos, como mais de 72 horas semanais e menos de 44 horas semanais trabalhadas. Os entrevistados são experientes, atuam há oito anos na área e se dedicam exclusivamente à ocupação de cuidador de idosos.

O Papel da enfermagem para a prática cotidiana do cuidador formal de idosos

A Enfermagem por ter o cuidado como sua essência e prática também exerce o papel de educador em e para o cuidado em saúde nos seus vários cenários de atuação. Seu papel de educador se dá nos cursos de formação para cuidador de idosos, mas também para os pacientes e seus cuidadores com o objetivo de promover o desenvolvimento de práticas de cuidados gerais para o cotidiano de saúde de forma segura e de qualidade. Entretanto, essa aprendizagem do cuidador também se dá no cotidiano de cuidado por meio da observação das atividades realizadas e de informações recebidas durante sua atuação.

Eu aprendi com as enfermeiras a cuidar sabe? Dá o banho e tudo, eu já sabia mas fiquei mais como é que fala? Aperfeiçoada, mais prática no serviço né. [...] aí fez uma ferida, foi só abrindo aí a enfermeira foi fez curativo e falou para sempre trocar, lavar e tal. Aí eu sempre fazia. Mas eu fazia, deixava tudo certinho [...] tudo arrumadinho. [...] as quatro filhas mulheres, todas as quatro são enfermeira. Então, com elas aprendi muito, elas botavam o traçado e me ensinou muito como usar o traçado e olha que a mãe dela era obesa e eu não tive dificuldade de cuidar dela. (CI 13)

O papel da enfermagem no processo de formação, formal ou informal do cuidador de idosos é apenas um dos pontos a serem trazidos para ampla discussão sobre a delimitação de atribuições entre esses profissionais, assim como as características dos processos de trabalho e conhecimentos necessários para realizá-lo de forma segura e de qualidade para o idoso. A atuação em parceria com a enfermagem contribui para melhoria do conhecimento e maior possibilidade de formação para o cuidado e para prática cotidiana do cuidador formal de idosos.21

Os enfermeiros cumprem o papel de educadores em saúde, conforme foram preparados durante a sua formação acadêmica, ministrando cursos e orientando outros profissionais do cuidado, idosos e seus familiares. No contexto de formação e preparação dos cuidadores formais de idosos para desempenharem o cuidado, o enfermeiro atua como instrutor em saúde em cursos os quais têm sido ofertados de modo heterogêneo, por instituições particulares e públicas com diferentes metodologias, ementas curriculares e carga horária.21

Nesse cenário, é importante salientar que, por não possuírem uma padronização, os cursos de formação de cuidadores de idosos são meios que conferem ao cuidador formal uma validação do seu conhecimento teórico sem que haja a garantia de que esse saber contemplará a demanda da realidade prática. Contudo, ter o curso de cuidador para esses profissionais representa um diferencial no mercado de trabalho e pode contribuir para melhores ofertas de emprego e salários.22

Estudos destacam que a limitação no cuidado relatada pelos cuidadores reside em dificuldades no ato de cuidar, sendo o seu preparo para cuidar considerado fundamental, sendo o processo de educação e orientação baseado em informações sobre os cuidados disseminadas e distribuídas pelos profissionais de serviços de saúde utilizados.23

Assim, deve-se refletir acerca do conteúdo abordado em tais cursos, posto que, para a formação na área da saúde é necessário que o estudante seja capaz de entender a técnica e, além disso, desenvolver um raciocínio crítico que permite a sua transformação em um profissional competente. 23-24 A partir do exposto, infere-se que fornecimento de um ensino padronizado em tais cursos pode ser capaz de estabelecer um maior reconhecimento social e político do cuidador de idosos, conferindo-lhes identidade própria e diferenciando-os dos profissionais de enfermagem. Entretanto, isso poderá ser interpretado como uma perda de espaço para os profissionais de enfermagem no mercado de cuidado ao idoso assim como desvalorização salarial destes.

Diante desse contexto, destacam-se as atuais discussões acerca do modo de atuação do enfermeiro no ensino de formação de cuidadores, tendo em vista a publicação da recente legislação do COFEN, Resolução nº 582 de 2018 que veda a participação desse profissional na instrução de práticas de Enfermagem que exija aplicação de conhecimentos técnico-científicos em atividades de formação de Cuidadores de Idosos. Tal regulamentação atua pontualmente em um iceberg submerso na lógica de mercado de trabalho atual. Essa não apresenta claramente as atividades que pertencem à enfermagem e clamam por uma propriedade sobre certos conhecimentos científicos de forma abstrata.24

Percebe-se que esse caminho não traz resultados práticos, uma vez que associado à falta de padronização dos cursos existentes e ausência de legislações que categorizam atividades a serem desempenhadas pelo cuidador poderão contribuir negativamente para a prática ilegal, insegura e baixa de qualidade desses para com os idosos. Assim, também pode representar a perda de um espaço para conscientização e formação ética e sociopolítica do cuidador quanto aos riscos para prática ilegal da enfermagem.

A falta dessa formação e conscientização associada ao perfil dos cuidadores de idosos de serem de maioria mulheres, com idade superior a 40 anos, baixo nível de escolaridade e necessidade de reinserção no mercado de trabalho,24 fazem desses profissionais suscetíveis às ações predatórias da lógica de mercado oferta e procura.

A PNSPI considera os cuidadores de idosos parceiros das equipes de saúde na assistência aos idosos dependentes, entretanto essa política não prevê formas de fornecer condições de trabalho, conhecimento das técnicas de cuidado com os idosos, e muito menos aborda as formas de organização desse trabalho deixando-os vulneráveis ao contexto de precarização do trabalho e adoecimento.24

Limites (in)visíveis do cuidado ao idoso entre os cuidadores de idosos e a enfermagem

A presença do cuidador em vários cenários de prática de enfermagem e seu contato com esse profissional permite que esse compreenda mais sobre suas atividades e muitas vezes se torne mais seguro para realizá-las com ou sem a supervisão de enfermagem. Essa autonomia permite que esse ultrapasse as barreiras dos limites de sua atuação com o profissional de enfermagem. Embora reconheçam que os procedimentos de alta complexidade técnica e que exigem maior conhecimento técnico devam ser realizados por profissionais da enfermagem, esses conceitos acabam sendo mitigados mediante a segurança para realizá-los mediante o cotidiano observado.

Troca de dieta, às vezes eu faço para ajudar o técnico, às vezes né falta. E micro, né a gente coloca. (CI 09)

Eu sempre ajudo as enfermeiras a olhar os outros pacientes. (CI 16)

O que eu aprendi o que eu sei é tudo eu aprendi no hospital mesmo ajudando, vendo. Apesar que a gente não pode fazer muita coisa. Igual a gente que é cuidador, a gente não pode passar uma sonda, apesar que eu sei passar sonda, nele já aprende, a gente não pode é, é aplicar uma insulina, eu sei eu aplico, jamais o cuidador pode aspirar tráqueo [traqueostomia]. Eu aspiro ele totalmente. (CI 10)

Dou banho, eu troco fralda, eu passo a dieta nela, medicamento, limpo ela toda, faço curativo, faço tudo, tudo com ela. Preparadíssima, tenho receio nenhum de qualquer coisa. Não falo assim passar uma sonda, porque tem que ser mais, isso aí eu não vou falar que faço, porque aí já é a parte, tem que ser do técnico mesmo de enfermagem né, mas tudo sou eu que faço, tranquilo, tranquilo. (CI07)

A coexistência e constância nos diversos cenários de atuação da enfermagem e o compartilhamento do mesmo “objeto de trabalho” traz desafios para delimitação da atuação do profissional cuidador de idosos que tem sido colocada à margem das discussões sobre o mercado de trabalho em saúde.

Assim, o suporte e a orientação dos cuidadores são realizados pelos profissionais de enfermagem ao praticarem o cuidado ao idoso. No entanto, é perceptível que os limites de atuação desses profissionais são (in)visíveis no contexto do cuidado ao idoso, sendo sua visibilidade dependente dos interesses nas circunstâncias. Os limites profissionais entre o cuidador formal e o técnico de enfermagem podem ser invisíveis ao familiar e a algumas instituições de saúde, que consideram o custo para empregar o técnico de enfermagem mais oneroso. Da mesma forma, para uma parcela de profissionais de saúde, esses limites são pouco considerados em um contexto de sobrecarga de trabalho no qual delegam atividades para esse cuidador.

Cuidador visto como profissionais da enfermagem - autopercepção do cuidador

Alguns cuidadores se comparam aos profissionais de enfermagem, não veem diferença de atribuições, uma vez que a finalidade é prestar cuidado ao idoso. Embora, considerem que o técnico de enfermagem é mais reconhecido socialmente e consequentemente recebem salário superior ao do cuidador. Assim como se estabelecem na hierarquia da divisão de trabalho profissional como subordinados ao técnico e consequentemente ao enfermeiro. 

Se for assim deu ficar desempregada eu não sei se eu procuraria uma outra profissão, eu gostaria de ser ou cuidadora ou enfermeira que vai dá no mesmo, entendeu? (CI 03)

Você poder falar cuidador como o técnico de enfermagem, entendeu? Técnico de enfermagem, igual eu te falei, pode fazer a mesma coisa que a gente, mas eles têm técnico de enfermagem, então eles ganha melhor, às vezes a gente até faz mais, mais, tem essa, diferença. Apesar de ser quase igual, não é igual logicamente eles são mais profissionais, tem mais coisa, mas em questão da ativa ali é igual, entendeu? (CI E09)

Eu sou comandada pelos técnicos. Eles chegam, o que eles acham certo, o que eles não acham, mas se alguma coisa eu achar que não está certo, eu não aceito não. [..] desculpa eu falar, tem os bons e tem os ruins. Infelizmente é assim. Eles vêm para dá o banho né, antes eles vinham para virar de decúbito, agora eles não tão vindo não. É uma coisa que eu acho erradíssima, muito errado. Mas, se essa parte eu for reclamar, dá muita confusão. Aí eu faço o que eu posso né, faço o que eu posso. (CI 03)

Consideram-se parte da equipe de enfermagem para a divisão de trabalho do cuidado. Ser cuidador é o passo inicial de sua trajetória profissional para a enfermagem.

Estudei técnico de enfermagem, para buscar uma qualificação, não parei como cuidador de idoso. (CI 12)

Meu sonho era fazer enfermagem, então assim isso aqui ficou meio termo, porque eu ainda faço mais do que um enfermeiro. (CI 11)

A figura do enfermeiro é tida como um profissional não tão próximo do paciente quanto o cuidador. E diferenciam-se da enfermagem pelo caráter ainda reconhecido como missionário, vocacional e sem formação educacional específica deles em contrapartida o cuidado prestado por profissionais de enfermagem é considerado superior por ter embasamento no conhecimento científico.

Cuidador tem que ter missão, já vem com essa missão. Porque quantas pessoas fizeram o curso comigo, na hora da primeira troca não foi mais! Porque é fácil, a pessoa pensa que ela vai chegar a conversar com ele [idoso], rir, comer junto com ele, e ele não vai cagar, ele não vai mijar, ele não vai vomitar de jeito nenhum, não vai ter uma secreção de forma nenhuma, entendeu? As pessoas fazem o curso como cuidador, eu acho que ele baseia mais o cuidador como enfermeiro. Porque o enfermeiro não toca, ele não toca no paciente de certa forma, eu acho que eles calculam assim, entendeu? Então, pra mim cuidador tem a missão, já nasceu com aquela missão, é de coração mesmo. (CI 11)

As práticas de cuidar podem ser variadas. O que as diferencia, portanto, é sua mercantilização, que define a hierarquia, formação, remuneração e condições de trabalho.26-27 Com base nesse fato, é notório que, para o cuidador formal de idosos, ser visto ou “confundido” pela sociedade, de modo generalista, como um profissional da enfermagem é um aspecto considerado como uma forma de reconhecimento e respeito ao seu trabalho, uma vez que reconhece, na enfermagem, o núcleo comum do cuidado como prática profissional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É evidente que o cuidador formal de idosos vem ganhando espaço no cenário de cuidado dos idosos por meio da transferência dessa responsabilidade do cuidado tradicionalmente exercido por um membro familiar para um profissional contratado. Argumenta-se ainda, com base nas análises acerca dos salários pagos, que o custo baixo de contratação dos cuidadores, devido a sua informalidade e a precariedade dos contratos de trabalho, acarreta a preferência por esse profissional, já que gera um menor impacto nas rendas familiares.

Nesse cenário de limites tênues de atuação profissional, encontra-se o cuidador formal de idosos e os profissionais de enfermagem. Por um lado, no contexto das práticas, principalmente a domiciliar, nota-se um choque entre as ações do cuidador de idosos formais e do técnico de enfermagem. Por outro lado, no contexto da formação e supervisão desse profissional, o cuidador e o enfermeiro encontram empasses nessa relação.

A necessidade de se discutir os limites profissionais entre o cuidador de idosos e os profissionais de enfermagem torna-se importante diante do cenário de expansão da demanda de cuidados devido ao envelhecimento populacional que promove busca por recursos para o cuidado ao idoso.

Diante dessa conjuntura e considerando que o profissional cuidador também presta o cuidado ao idoso, reconhecido por eles como inferior, mas mais próximo do idoso do que a enfermagem é primordial o desenvolvimento e aprofundamento dessa realidade por meio de pesquisas e discussões acerca da dinâmica das relações nesses espaços de trabalho. A definição de aparatos legais e éticos para o cuidado deve promover a delimitação de atribuições específicas a cada categoria profissional a partir do conhecimento das diferenças existentes nos processos de trabalho e de formação de cada um. Definir e preencher as lacunas quanto ao fazer do cuidador tem como premissa evitar que ele torne a ser “profissional de enfermagem informal” e continue desenvolvendo atividades que não sua de competência a margem dos olhares da regulamentação profissional.

As limitações deste estudo devem ao fato de ser localizado em apenas uma capital do Brasil, com uma pequena amostra de cuidadores formais de idosos. Entretanto, este estudo pode contribuir para fomentar a discussão acerca dessa temática com possível delimitação de atuações práticas no contexto de trabalho e não pontualmente apenas em seu aspecto de formação como foi realizado recentemente pela portaria. Vetar a participação de enfermeiros na formação dos cuidadores poderá contribuir para maior risco aos idosos cuidados assim como pode representar a perda de um espaço para dar a esses profissionais a clareza sobre os riscos de uma prática ilegal da profissão de enfermagem.

Entende-se que o que esses profissionais precisam aprender faz parte do escopo do que a enfermagem ensina para o próprio familiar, que presta cuidado ao idoso no domicílio ou mesmo para ensinaria para o próprio idoso caso esse pudesse realizar seu autocuidado, garantindo assim práticas de cuidado mais seguras e de qualidade, assim como o momento de se procurar os profissionais de saúde propriamente capacitados para essas.

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12 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Guia prático do cuidador. Brasília, 2008. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_pratico_cuidador.pdf

13 Conselho Federal de Enfermagem (COFEN). Resolução n° 0582/2018. Veda a participação do Enfermeiro no ensino de práticas de Enfermagem que exija aplicação de conhecimentos técnico-científicos em atividades de formação de Cuidador de Idosos. 2018. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/resolucao-cofen-no-582-2018_64391.html

14 Gil AC. Métodos e técnicas de pesquisa social. 7ª ed. São Paulo: Atlas; 2019.

15 Minayo, M.C.S; Costa, AP. Técnicas que fazem uso da Palavra, do Olhar e da Empatia: Pesquisa Qualitativa em Ação. Aveiro: Ludomedia; 2019.

16 Maia, A.C.B. Questionário e entrevista na pesquisa qualitativa: elaboração, aplicação e análise de conteúdo: Manual Didático. São Carlos: Pedro e João Editores; 2020.

17 Ribeiro J, Souza FN, Lobão C. Saturação da análise na investigação qualitativa: quando parar de recolher dados?. Revista Pesquisa Qualitativa. 2018,10(6):3-7. Disponível em: https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/213

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Recebido em: 30/06/2021

Aceito em: 30/11/2022

Publicado em: 23/12/2022



[1] Instituição de Ensino e Pesquisa da Santa Casa de Belo Horizonte. Belo Horizonte, Minas Gerais (MG). Brasil (BR). E-mail: alinekallas@gmail.com ORCID: 0000-0003-4228-0365

[2] Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, Minas Gerais (MG). Brasil (BR). E-mail: meirieletavares@gmail.com ORCID: 0000-0003-3722-9258

[3] Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, Minas Gerais (MG). Brasil (BR). E-mail: isacancio@gmail.com ORCID: 0000-0001-5408-0825

[4] Centro Universitário Newton Paiva Ferreira. Belo Horizonte, Minas Gerais (MG). Brasil (BR). E-mail: twmattar@gmail.com ORCID: 0000-0003-4697-3521

 

Como citar: Fernandes ARK, Araujo MT, Velloso ISC, Mattar e Silva TW. O papel do cuidador formal de idosos: facilidades e dificuldades no exercício do cuidado J. nurs. health. 2022;12(3):e2212321355. DOI: https://doi.org/10.15210/jonah.v12i3.4587