ARTIGO ORIGINAL

Transição de carreira: percepção de enfermeiros que atuaram como técnicos de enfermagem

Career transition: perception of nurses who worked as nursing technicians

Transición de carrera: percepción de enfermeros que actuaron como técnicos de enfermería

Oliveira, Larissa Barros de;[1] Lima, Rogério Silva;[2] Silveira, Cristiane Aparecida;[3] Martinez, Maria Regina;[4] Sanches, Roberta Seron[5]

RESUMO

Objetivo: conhecer a percepção de enfermeiros que atuaram como técnicos de enfermagem sobre a transição de carreira após a conclusão do curso superior. Método: pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória, realizada com nove enfermeiros que já atuaram como técnicos. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas e analisados por meio de Análise Temática. Resultados: a transição de carreira na instituição em estudo depende da disponibilidade de vagas e caracteriza-se como um momento de ansiedade e expectativa. Os participantes relatam desafios ligados às atribuições do enfermeiro e à sua aceitação nas equipes de enfermagem. Apontam que suas habilidades técnicas e vivências contribuem para articular gerência e assistência. Conclusões: é importante os empregadores pensarem estratégias para absorção e adaptação destes profissionais, bem como há a necessidade de reflexões dos docentes sobre as especificidades desse grupo na graduação.

Descritores: Enfermagem; Técnicos de Enfermagem; Mobilidade ocupacional; Mercado de trabalho

ABSTRACT

Objective: to know the perception of nurses who worked as nursing technicians about the career transition after the conclusion of higher education. Method: qualitative, descriptive and exploratory research, carried out with nine nurses who have already worked as technicians. Data were collected through semi-structured interviews and analyzed by Thematic Analysis. Results: the career transition in the institution under study depends on the availability of vacancies and is characterized as a moment of anxiety and expectation. Participants report challenges, linked to the nurse's attributions and their acceptance in the nursing teams. They point out that their technical skills and experiences contribute to articulating management and assistance. Conclusions: it is important for employers to think about strategies for absorbing and adapting these professionals as well as the need for professors to reflect on the specificities of this group at graduation.

Descriptors: Nursing; Licensed practical nurses; Carrer mobility; Job market

RESUMEN

Objetivo: conocer la percepción de los enfermeros que actuaban como técnicos de enfermería sobre la transición de carrera después de la conclusión de la educación superior. Método: investigación cualitativa, descriptiva y exploratoria, realizada con nueve enfermeros que ya actuaron como técnicos. Los datos fueron recolectados a través de entrevistas semiestructuradas y analizados por Análisis Temático. Resultados: la transición de carrera en la institución en estudio depende de la disponibilidad de vacantes y se caracteriza por ser un momento de ansiedad y expectativa. Los participantes relatan desafíos vinculados a las atribuciones del enfermero y su aceptación en los equipos de enfermería. Señalan que sus habilidades técnicas y experiencias contribuyen a articular la gestión y la asistencia. Conclusiones: es importante que los empleadores reflexionen sobre estrategias de absorción y adaptación de estos profesionales bien como la necesidad de que los profesores reflexionen sobre las especificidades de este grupo en la graduación.

Descriptores: Enfermería; Enfermeros no diplomados; Movilidad laboral; Mercado de trabajo

INTRODUÇÃO

A enfermagem é reconhecida como a maior força de trabalho na área da saúde. No Brasil, existem aproximadamente 2.726.217 profissionais regulamentados para o exercício profissional, dentre quatro categorias diferentes, nomeadamente, auxiliares, técnicos de enfermagem, obstetrizes e enfermeiros.1

Especificamente sobre os técnicos e auxiliares de enfermagem, que são profissionais de nível médio, tem sido descrita a busca pelos cursos de graduação em enfermagem como forma de possibilitar o crescimento profissional.2 Sobre este aspecto, a pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil identificou que mais de um terço desses trabalhadores já concluíram ou estão cursando o nível superior, principalmente em enfermagem, escolaridade acima da exigida para o desempenho da função em seus postos de trabalho.3

Este fenômeno, referido como superqualificação, perpassa fatores como a percepção da necessidade de formação universitária como requisito para o emprego, as incertezas do mercado de trabalho, que levam à busca por ampliação de competências profissionais, o fato de os Conselhos Regionais de Enfermagem não mais fornecerem o registro profissional aos auxiliares, o que pode ser entendido como uma inclinação à exigência de maior escolaridade e ainda, o aumento da oferta de vagas e consequente facilidade de acesso ao ensino universitário no país.4

Complementa-se ainda, que a busca pelo curso superior pode ser um caminho para melhoria salarial haja vista que no Brasil, ainda não há um piso salarial praticado para a enfermagem e que tem sido descrita a ocorrência de subsalários a estes trabalhadores.5-6  

Nesse contexto, no último Censo da Educação Superior disponibilizado pelo Ministério da Educação, referente ao ano de 2020, o curso de enfermagem esteve entre os 20 cursos de graduação com maior número de matrículas.7 Contudo, a ampliação do acesso ao ensino superior não foi acompanhada por equivalente expansão da oferta de postos de trabalho mais qualificados3,8 e, por isso, questionamentos acerca da transição de carreira dos profissionais de enfermagem podem ser suscitados, particularmente no que diz respeito ao ingresso destes nas vagas de trabalho oferecidas para enfermeiro.

  Outrossim, um estudo aponta dificuldades dos enfermeiros que já atuaram como técnicos e auxiliares de enfermagem para se adaptarem ao novo papel profissional, principalmente nos primeiros anos de carreira, dadas as particularidades da composição da profissão e o desafio de saírem de uma situação de amplo domínio para uma nova e desafiadora.9

Esclarece-se que a Lei do Exercício Profissional da Enfermagem estabelece as atribuições dos enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem. Em linhas gerais, aos primeiros cabe o planejamento, a organização, a execução e a avaliação dos serviços de assistência de enfermagem, a prescrição da assistência de enfermagem e o cuidado aos pacientes de maior gravidade. Aos técnicos, atribui-se as ações assistenciais exceto as privativas do enfermeiro e a participação no planejamento da assistência e aos auxiliares, as atividades assistenciais de menor complexidade e de natureza repetitiva, sob supervisão.10

Frente a estas considerações, o estudo teve por objetivo conhecer a percepção de enfermeiros que atuaram como técnicos de enfermagem sobre a transição de carreira após a conclusão do curso superior.

MATERIAIS E MÉTODO

Estudo de abordagem qualitativa, recorte descritivo e exploratório.  Foram convidados à participação, trabalhadores de um hospital geral, filantrópico e de médio porte situado em um município da região sul do estado de Minas Gerais, que contemplaram os seguintes critérios de elegibilidade: idade igual ou superior a 18 anos, possuir formação e atuação como técnico de enfermagem e ter concluído o Curso de Graduação em Enfermagem a partir do ano 2000.

Justifica-se este critério temporal, pois relata-se, a partir do ano 2000, a crescente superqualificação de trabalhadores de enfermagem, associada à expansão do acesso ao ensino superior no Brasil, com aumento dos cursos e vagas para a graduação em enfermagem.3 

Assim, segundo a gerente do serviço de enfermagem da instituição em questão, 15 profissionais atendiam ao perfil mencionado. Contudo, um colaborador se recusou a participar, justificando indisponibilidade decorrente do excesso de atividades no trabalho, dois estavam em férias, um em licença médica e ainda, identificou-se dois que não atendiam aos critérios de elegibilidade por não terem atuado como técnicos, apenas realizado o curso. Portanto, compuseram o grupo de estudo, nove colaboradores.

A coleta de dados ocorreu entre os meses de fevereiro e março de 2020 e foi conduzida pela pesquisadora principal, graduanda em Enfermagem. Os participantes foram abordados pessoalmente e orientados acerca dos objetivos e procedimentos do estudo. Os que concordaram em participar assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e procedeu-se a entrevista, em uma sala na referida instituição, em horário de trabalho, na presença apenas da pesquisadora e do participante.

Para tanto, foi utilizado um roteiro semiestruturado elaborado pelos pesquisadores e composto por duas partes. A primeira consistiu na caracterização sociodemográfica e a segunda, em um roteiro de entrevista semiestruturada, composto pela seguinte questão norteadora: Fale sobre sua carreira na enfermagem após a conclusão do curso de graduação.

Foi efetuado um teste piloto com dois profissionais para assegurar a compreensibilidade da questão, a sua pertinência ao objetivo da investigação, bem como preparar a pesquisadora para a coleta de dados. Não havendo necessidade de modificação da questão norteadora, as entrevistas foram incluídas no processo de análise.

As entrevistas foram gravadas em áudio com auxílio de um gravador digital e tiveram duração média de 12 minutos. Foram transcritas integralmente após seu término e para a garantia do anonimato, os depoimentos foram identificados por combinações alfanuméricas em que “E” refere-se à Enfermeiro, seguido por numerais, de acordo com a ordem de acontecimento da entrevista.

Para a organização e análise dos dados, procedeu-se a Análise Temática, um método que busca a identificação e análise de padrões observados dentro do conjunto de dados, sendo percorridas seis fases conforme preconizado pelas autoras.11 Destarte, a primeira fase denomina-se “familiarizando-se com os dados” e contemplou a transcrição dos dados e realização de leituras repetidas, sendo realizada pela pesquisadora principal.11

A seguir, na fase “gerando códigos iniciais”, buscou-se a identificação de códigos em todo o conjunto de dados, ou seja, os segmentos elementares correspondentes aos interesses do estudo, os quais foram sinalizados por meio de marcações coloridas nas entrevistas e receberam um título coeso que reportasse a significação do excerto assinalado.11 A terceira fase, intitulada “procurando por temas”, consistiu na organização dos códigos em temas e subtemas, relacionando-os aos extratos das entrevistas correspondentes e foi realizada de forma colaborativa entre dois autores.11

Procedeu-se então, na quarta fase, “revisando temas”, a leitura dos fragmentos das entrevistas que foram associados a cada tema e a avaliação dos temas segundo sua homogeneidade interna e heterogeneidade externa. Em seguida, na quinta fase, “definindo e nomeando temas”, os temas foram nomeados, com vistas a contemplar os aspectos abordados pelos mesmos.11 Por fim, a sexta etapa, denominada “produzindo o relatório”, destinou-se à produção do relatório da pesquisa, com a apresentação dos temas, exemplificação com excertos das entrevistas e discussão à luz da literatura.11

Para a apresentação do relato de pesquisa, foram seguidas recomendações do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research, traduzido para o português.12 O estudo respeitou a Resolução 466/201213 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), conforme parecer no 3.664.794 e Certificado de Apresentação de Apreciação Ética no 24096919.0.0000.5142.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os nove participantes do estudo apresentavam idades entre 34 e 49 anos, eram em sua maioria casados ou em união estável, com filhos e procedentes de cidades próximas à do estudo. A maioria referiu trabalhar como enfermeiro em mais de um emprego e ter renda mensal bruta de três a cinco salários-mínimos. Apenas dois entrevistados realizaram o curso técnico em instituições públicas e todos cursaram a graduação em instituições privadas de ensino, enquanto já atuavam como técnicos.

Concernente à trajetória profissional, todos os participantes atuavam como enfermeiros. Identificou-se que possuíam de cinco a 14 anos de experiência como técnicos e de quatro a 14 anos de experiência como enfermeiros. Apenas cinco participantes começaram a atuar como enfermeiros em menos de um ano após a conclusão do ensino superior.

Por meio da Análise Temática, foram definidos dois temas. O primeiro foi denominado “Transição de carreira de técnico de enfermagem para enfermeiro: espera por uma oportunidade” e o segundo foi intitulado “O enfermeiro que já atuou como técnico de enfermagem: desafios e potencialidades”.

Inferiu-se que a transição de carreira de técnico de enfermagem para enfermeiro, na instituição de estudo, consistiu em um processo dependente da disponibilidade de vagas e da escolha do empregador, sendo, portanto, um momento de ansiedade e expectativa. Uma vez inseridos no cargo de enfermeiros, os profissionais relataram enfrentar desafios relativos às atribuições e responsabilidades do enfermeiro e à sua aceitação dentro das equipes. Em contrapartida, apontaram que os enfermeiros que já foram técnicos de enfermagem apresentam diferenciais, sobretudo no que diz respeito a conhecer a visão de seus liderados e ter mais experiência para execução de procedimentos técnicos.

Transição de carreira de técnico de enfermagem para enfermeiro: espera por uma oportunidade

O tema possibilitou apreender que ainda que seja percebida a valorização pela instituição de estudo, a transição de carreira de técnico de enfermagem para enfermeiro pode ser um processo demorado, uma vez que depende da disponibilidade de vagas e, também, da escolha do empregador, conforme mostram as falas:

A instituição valoriza muito as pessoas que já estão aqui dentro, tanto que eu tenho vários colegas que formaram e foram se encaixando quando surgia oportunidade [...]. E depois de ter encaixado quem já era daqui eles foram chamando o pessoal de fora, mas eles priorizam quem já está aqui. (E4)

Demorou um ano. Eu já trabalhava aqui na instituição, entraram dois na minha frente que tinham formado primeiro, mas eu não demorei [...], assim que surgiu a oportunidade eu entrei, os que entraram antes é porque tinham formado antes, estavam esperando há mais tempo. (E3)

Estudo realizado com gestores de ensino superior em enfermagem e com empregadores apontou que com o aumento dos cursos de graduação, a disponibilidade de enfermeiros para o mercado de trabalho é grande, o que acarreta em um elevado contingente de profissionais, desproporcional à quantidade de vagas e consequentemente, no aumento do tempo que os egressos levam na busca de uma colocação no mercado.8

Assim, a elevada oferta de enfermeiros em comparação aos postos de trabalho intensifica a competitividade, o que pode contribuir para que o recém-formado tenha maiores dificuldades de inserção, haja vista que não possui de experiência quando comparado aos demais candidatos.

A exigência de experiência tem sido relatada como uma adversidade para os enfermeiros recém-formados.14-15 Mesmo para aqueles que já trabalhavam em outras categorias profissionais da área, esta dificuldade pode ocorrer, haja vista as diferentes atividades desenvolvidas pelos profissionais de nível médio e superior.

Para os participantes deste estudo, a espera, em alguns casos superou um ano e foi mencionada como um momento de expectativa, ansiedade e frustração, o que despertou conflitos entre permanecer na instituição em que já atuavam ou buscar por oportunidades externas.

Foi um momento de ansiedade total, naquele momento não tinha vaga no hospital para enfermeiro e eu ficava sonhando, pensando quando teria vaga e se tivesse vaga ela seria minha. Eu esperei pouco tempo, mas foi um momento de ansiedade [...] eu até pensei em ir embora da cidade [...]. (E8)

Eu tenho colega que demorou cinco anos para subir, então a gente fica na expectativa, naquela ansiedade[...] é um pouco frustrante você esperar um ano como eu esperei, só que o mercado de trabalho não estava tão bom assim pra fora pra eu largar o técnico e tentar em outro lugar, então eu acabei esperando esse ano [...]. (E3)

A este respeito, um estudo realizado com profissionais que passaram por processo de demissão em um hospital universitário apontou que, entre os técnicos de enfermagem, muitos possuíam graduação e se desligaram para assumir vagas de enfermeiro em outras instituições.16

Porém, as perspectivas pouco positivas do mercado de trabalho e as questões pessoais dos participantes deste estudo parecem ter influenciado a decisão de aguardar uma oportunidade na instituição em que já atuavam.

Pondera-se que a avaliação dos gestores também é um fator que influencia no tempo entre a conclusão da graduação e a ocupação da vaga de enfermeiro, período este, em que se busca identificar os candidatos com perfil compatível e competências desejáveis para o cargo.

Neste estudo, os participantes não mencionaram a existência de planos de carreira e políticas de recrutamento interno e nesse sentido, a ausência de plano de carreira é reconhecida como um fator de desmotivação dos profissionais de enfermagem.17 Complementa-se que as políticas de recrutamento interno também podem contribuir para a motivação, pois objetivam a valorização do capital humano e possibilitam a ascensão de carreira dos trabalhadores, estimulando o desempenho e a capacitação.18   

O enfermeiro que já atuou como técnico de enfermagem: desafios e potencialidades

O segundo tema aborda os desafios percebidos pelos enfermeiros para o exercício da nova função, bem como a percepção de potencialidades que a experiência anterior como técnicos de enfermagem lhes confere. Ele congrega dois subtemas, intitulados “Gerenciamento da equipe: desafios da mudança de papel” e “Habilidade técnica e visão diferenciada: potencialidades do enfermeiro que já atuou como técnico de enfermagem”. 

No que diz respeito ao subtema “Gerenciamento da equipe: desafios da mudança de papel”, infere-se que embora já estivessem inseridos na instituição, a transição de carreira de técnico de enfermagem para enfermeiro consistiu em um momento desafiador, sobretudo no exercício da função gerencial atribuída a este profissional.

Os participantes apontaram as elevadas responsabilidades que recaem sobre o enfermeiro, haja vista que a este profissional é atribuído o gerenciamento da assistência de enfermagem e também, a coordenação os profissionais que compõem a equipe: 

Quando você está como técnico você é responsável por aqueles pacientes específicos e como enfermeiro você é responsável por todos os pacientes e pela equipe, ou seja, pelo setor inteiro então a dificuldade acaba aumentando. (E4)

[...] como enfermeira a gente tem que ter mais autonomia [...]. É diferente do técnico porque a gente está ali para delegar as funções, supervisionar. (E6)

Identificou-se em um depoimento, que a complexidade do trabalho do enfermeiro não era totalmente compreendida, mesmo pelo profissional que já compunha a equipe de enfermagem como trabalhador de nível médio. 

Quando eu era técnica eu achava que ser enfermeira era muito mais fácil, mas não é! Depois que eu comecei a trabalhar vi que a responsabilidade era muito maior. (E9)

Em estudo realizado com técnicos e auxiliares de enfermagem que atuavam em um hospital geral, também se observou nos depoimentos dos participantes, a falta de clareza acerca do papel do enfermeiro, o que pode contribuir para a ocorrência de disputas e conflitos entre os membros da equipe.19

Assim, inseguranças quanto à inserção e à aceitação pelas equipes têm sido relatadas entre os enfermeiros recém-formados sobretudo por liderarem com pessoas já experientes.20 Nesse sentido, preocupações quanto à aceitação pelas equipes como profissionais de enfermagem de nível superior, e acerca da supervisão e da liderança também foram relatadas pelos participantes deste estudo:    

[...] quando você passa para enfermeiro tem certa resistência, né? Porque você foi técnico, você veio lá de baixo, então muita gente te olha e não imagina você como supervisor, mas quando você mostra o seu trabalho, mostra que você é capaz ao novo cargo e que você tem competência para estar ali, eu acho que você começa a ganhar o respeito. (E1)

Acho que a supervisão mesmo, eu senti muita diferença, porque como eu já era técnica aqui eu tinha vivência com a equipe, e muitos te acolhem como enfermeira, mas muitos não. (E2)

Especificamente sobre os enfermeiros que já atuaram como técnicos de enfermagem, estes frequentemente passam a liderar uma equipe na qual já trabalharam antes e, além das adaptações para o exercício da nova função, também precisam superar preconceitos e assegurar a credibilidade por parte dos colegas.21

Importante ressaltar que a capacidade de liderar a equipe é uma das principais competências requeridas do enfermeiro, quando inserido no mercado de trabalho, e que o seu desenvolvimento é gradativo e deve ser priorizado no ensino de graduação. Nesse sentido, faz-se relevante que as atividades curriculares contemplem o desenvolvimento desta competência por meio de atividades teóricas e práticas, com vistas a preparar os estudantes para exercerem o papel de líderes.22-23

Corroborando o exposto, as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Enfermagem, além da atenção à saúde, estabelecem como competências do enfermeiro, a administração e o gerenciamento, a comunicação, a tomada de decisão, a liderança e a educação permanente.24

O segundo subtema, intitulado “Habilidade técnica e visão diferenciada: potencialidades do enfermeiro que já atuou como técnico de enfermagem” permite observar que, apesar dos desafios vivenciados para atuarem no novo cargo, os participantes do estudo também relataram a percepção de que o enfermeiro que já atuou como técnico possui algumas potencialidades devido à experiência prévia.

Assim, foi possível apreender que o domínio das habilidades técnico-procedimentais foi percebido como um diferencial por estes profissionais, o que coaduna com resultados de outro estudo.2

A parte técnica para fazer isso eu já sabia [...] porque antigamente as funções do técnico eram muitas, por exemplo, alguns procedimentos, que hoje são privativos do enfermeiro, na minha época como técnico, a gente fazia. (E3)

[...] uma vez que a gente já tem o domínio da prática é mais fácil a gente trabalhar, do que a gente começar sem nenhuma prática. Porque assim, a prática a gente adquire com o tempo, a faculdade te dá a teoria. (E6)

Embora o domínio das técnicas seja indispensável, a organização do trabalho do enfermeiro e do técnico de enfermagem diferencia-se sobretudo, pelo maior aprofundamento científico do profissional de nível superior e pela articulação entre o assistir e o gerenciar.25

Pondera-se que a ênfase nas habilidades técnicas pode indicar possíveis dificuldades em articular as dimensões cuidar e gerenciar, requisito importante para a função de enfermeiro. Reconhece-se que a mudança de papéis exige adaptações a um novo fazer e, também, transformações internas do profissional, as quais não ocorrem de maneira instantânea, mas designam um processo que exige tempo. 9

Outro diferencial referido pelos participantes, foi a percepção de que o enfermeiro que já atuou como técnico possui uma visão diferenciada, por conhecer o dia a dia da profissão e da atuação da equipe de enfermagem: 

[...] para mim, a visão é diferente. As minhas colegas que já foram técnicas têm um certo diferencial, conhecimento do que é estar ali atuando, ao contrário das outras, porque a faculdade, embora tenha o estágio, às vezes é pouco. (E2)

Você consegue enxergar dos dois lados. Você tem uma visão do que espera do enfermeiro e do que, como técnico, a gente achava que tinha que ser. (E3)

A gente vê a diferença do enfermeiro que já foi técnico do que não foi justamente na parte de trabalho porque eu enxergo melhor as coisas e tenho mais facilidade [...]. (E5)

A gente que já foi técnico a gente tem visão das necessidades do paciente. (E6)

[...] eu acho que a visão. Fica mais fácil de lidar com os técnicos que você trabalha porque você já passou por aquilo. (E9)

Os enfermeiros que atuaram como técnicos têm sua perspectiva construída a partir daquilo que vivenciaram, assim, trazem para seu cotidiano, as experiências de sua trajetória. Embora necessitem de um processo de adaptação, esses profissionais podem se diferenciar dos demais, por terem uma visão mais abrangente e aprofundada acerca da estrutura da profissão e de seus componentes.25

Assim, saber executar os procedimentos técnicos e possuir uma visão diferenciada foram apontados como capazes de contribuir para a atuação junto à equipe, em uma postura que articule a assistência à gerência de enfermagem: 

Tem muitos enfermeiros que não atuam junto com os técnicos, a gente sim, a gente vai junto com eles, não ficamos só sentados. (E5)

Quando você tem uma enfermeira que não tem curso técnico e vem trabalhar, elas só sabem falar fulano faz isso, fulano faz aquilo, elas não colocam a mão e você percebe que às vezes, não sabem mexer em certas coisas que são especificas do técnico, ou faz e fica meio perdida sabe? (E9)

É possível identificar nas falas, que enfermeiros participantes deste estudo reconhecem positivamente os profissionais que conseguem aliar o cuidado à beira leito com suas atribuições gerenciais e imputam esta postura às suas vivências prévias. Quanto a isso, um estudo observou que a atuação do enfermeiro que prioriza o fazer gerencial, desvinculado do cuidado direto ao paciente, é desvalorizada pelos demais membros da equipe de enfermagem.19

Contudo, questiona-se em que medida os depoimentos observados neste estudo, de que os enfermeiros que não foram técnicos de enfermagem ficam “apenas sentados”, “delegando funções” e sem “colocar a mão”, não sinalizam também, reflexos de conflitos de papéis existentes nas equipes de enfermagem. Mesmo porque há enfermeiros cuja atuação carece de um olhar crítico e holístico sobre o paciente ou sobre o serviço de saúde, caracterizando-se por ações tecnicistas e mecanizadas, independente de terem ou não experiência prévia como técnicos de enfermagem.

De todo modo, vale ressaltar que a cisão entre gerência e assistência ocorre quando as atividades administrativas do enfermeiro são afastadas do cuidado direto em decorrência da fragmentação do trabalho. Ao contrário, a gerência e assistência devem ocorrer de forma indissociada, com vistas à coordenação e à liderança da equipe para benefício do cuidado.26

Este estudo apresenta como limitação, o fato de retratar apenas a realidade do cenário em que foi desenvolvido. Também, aponta-se o fato de refletir o recorte temporal em que se deu a transição de carreira dos participantes e não necessariamente a realidade atual da profissão enfermagem. Entretanto, o estudo pode contribuir para reflexões sobre inserção no mercado de trabalho de um grupo em ascensão: o dos técnicos de enfermagem que optam pela graduação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A transição de carreira, para os enfermeiros com experiência prévia como técnicos de enfermagem, configurou-se como um processo permeado por ansiedade e expectativas em relação à atuação como enfermeiros. Uma vez inseridos no cargo de enfermeiros, os profissionais relataram enfrentar desafios relativos às novas atribuições e responsabilidades, particularmente, à coordenação das equipes de enfermagem, mas também, apontaram que as habilidades técnicas e a visão adquirida por meio de suas vivências contribuem para a atuação em uma postura que articula gerência e assistência.

Sinaliza-se a importância de que os empregadores pensem em estratégias para a absorção e adaptação destes profissionais. Reconhece-se também a necessidade de reflexões pelas instituições formadoras, sobre as especificidades desse grupo particular durante a graduação, com vistas a considerar seus conhecimentos e experiência e potencializar maior consonância entre teoria e prática e maior preparo para a transição de carreira, sem abrir mão da qualidade da formação integral para oferecer à sociedade enfermeiros com capacidade transformadora das realidades nas quais venham a se inserir. Sugere-se a realização de outros estudos, que abordem a transição de carreira destes profissionais no contexto atual, e também, que abordem a visão do empregador acerca do ingresso destes profissionais nos postos de trabalho.

REFERÊNCIAS

1 Conselho Federal de Enfermagem (COFEN). Enfermagem em números. 2022. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/enfermagem-em-numeros

2 Souza BCH, Cruz VLSP, Martins ECR, Moraes PC, Francisco MTR, Alves RN. Professionals’ view regarding the transition process from a nurse technician to a nurse. Rev. Pesqui. (Univ. Fed. Estado Rio J., Online). 2018;(4):1164-8. DOI: https://doi.org/10.9789/2175-5361.2018.v10i4.1164-1168

3 Machado MH, Wermelinger M, Vieira M, Oliveira E, Lemos W, Aguiar Filho W, et al. Aspectos gerais da formação da enfermagem: o perfil da formação dos enfermeiros, técnicos e auxiliares. Enferm. foco (Brasília). 2016;7(nesp):15-34. DOI: https://doi.org/10.21675/2357-707X.2016.v7.nESP.687

4 Wermelinger MCMW, Boanafina A, Machado MH, Vieira M, Ximenes Neto FRG, Lacerda WF. Nursing technician training: qualification profile. Ciênc. Saúde Colet. 2020;25(1):67-78. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.27652019

5 Silva MCN, Machado MH. Health and Work System: challenges for the Nursing in Brazil. Ciênc. Saúde Colet. 2020; 25(1):7-13. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.27572019 

6 Pedrolo E, Ramos TH, Ziesemer NB, Boostel R, Haeffner R. Profissionais de enfermagem de nível médio: série temporal salarial em dez anos. Research, Society and Development. 2021;10(16):e346101623840. DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i16.23840

7 Ministério da Educação (BR). Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Censo da Educação Superior 2020. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-da-educacao-superior/resultados

8 Oliveira JSA, Pires DEP, Alvarez AM, Sena RR, Medeiros SM, Andrade SR Trends in the job market of nurses in the view of managers. Rev. bras. enferm. 2018; 71(1):148-55. DOI: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0103

9 Costa MLAS, Merighi MAB, Jesus MCP. Being a nurse after having been a nursing student-worker: an approach of social phenomenology. Acta Paul. Enferm. (Online). 2008;21(1):17-23. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-21002008000100003

10 Brasil. Lei nº 7.498 de 25 de junho de 1986. Dispõe sobre a regulamentação do exercício da enfermagem, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 26 jun 1986; Seção 1:9273. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7498.htm

11 Braun V, Clarke V. Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology. 2006;3(2):77-101. DOI: https://doi.org/10.1191/1478088706qp063oa

12 Souza VRS, Marziale MHP, Silva GTR, Nascimento PL. Translation and validation into Brazilian Portuguese and assessment of the COREQ checklist. Acta Paul. Enferm. (Online). 2021; 4: APE02631. DOI: http://dx.doi.org/10.37689/acta-ape/2021AO02631

13 Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Resolução 466, de 12 de dezembro de 2012: diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília; 2012. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html

14 Nassif AA, Pereira SC. Perfil dos egressos do curso de enfermagem de uma universidade do planalto norte catarinense. BrazilianJournal of Development. 2019;5(12):32996-3008. DOI: https://doi.org/10.34117/bjdv5n12-355

15 Clapis MJ, Corrêa AK, Aredes NDA, Lunardello RBV, Souza MCBM Professional insertion of registered nurses: a study with alumni. Rev. Esc. Enferm. USP. 2021;55:e03745. DOI: https://doi.org/10.1590/S1980-220X2020013003745

16 Balabanian YCC, Monteiro MI. Factors related to voluntary external turnover of nursing professionals. Rev. Esc. Enferm. USP. 2019;53:e03427. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1980-220X2017033403427

17 Ferro D, Zacharias FCM, Fabriz LA, Schonholzer TE, Valente SH, Barbosa SM. Absenteeism in the nursing team in emergency services: implications in care. Acta Paul. Enferm. (Online). 2018;31(4):399-408. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201800056

18 Malik AM, Schiesari L. Além da reforma administrativa: a gestão de pessoas na prestação de serviços públicos de saúde no início de 2021. Cadernos Gestão Pública e Cidadania. 2021;26(84):e-83080. DOI: https://doi.org/10.12660/cgpc.v26n84.83080

19 Lima RS, Lourenço EB, Rosado SR, Fava SMCL, Sanches RS, Dázio EMR. Representation of nurse’s managerial practice in inpatient units: nursing staff perspective. Rev. gaúch. enferm. 2016;37(1):e54422. DOI: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2016.01.54422

20 Berghetti L, Franciscatto LHG, Getelina CO. Nursing training about management: obstacles and perspectives. Rev. enferm. Cent.-Oeste Min. 2019;9(1): 2820. DOI: https://doi.org/10.19175/recom.v19i0.2820

21 Castro JM, Souza EA, Alves RN, Oliveira MIDG, Souza PNS. Reflexões acerca do enfermeiro recém–graduado que atuou como técnico em enfermagemRev. Uningá (Online). 2017; 53(2):138-44. Disponível em: https://revista.uninga.br/uninga/article/view/1423

22 Moreira AC, Sousa ABB, Furlanis DP, Salviano LG, Porfírio RBM. A liderança como competência essencial na formação do enfermeiro. Revista Científica de Enfermagem.2021;11(34):373-83. Disponível em: https://recien.com.br/index.php/Recien/article/view/546

23 Leal LA, Soares MI, Silva BR, Bernardes A, Camelo SHH. Clinical and management skills for hospital nurses: perspective of nursing university students. Rev. bras. enferm. 2018;71(Suppl4):1514-21. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0452

24 Ministério da Educação (BR). Conselho Nacional de Educação. Resolução 3, de 7 de novembro de 2001: institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. 2001. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES03.pdf

25 Ferreira Junior AR, Fontenele MEP, Albuquerque RAS, Gomes FMA, Rodrigues MENG. A socialização profissional no percurso de técnico a enfermeiro. Trab. educ. saúde. 2018;16(3):1321-35. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00152

26 Ferreira VHS, Teixeira VM, Giacomini MA, Alves LR, Gleriano JS, Chaves LDP. Contributions and challenges of hospital nursing management: scientific evidence. Rev. gaúch. enferm. 2019;40:e20180291. DOI: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2019.20180291

Recebido em: 08/12/2021

Aceito em: 16/11/2022

Publicado em: 22/12/2022



[1] Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL). Alfenas, Minas Gerais (MG). Brasil (BR). E-mail: larissabarrosoliveira@yahoo.com.br ORCID: 0000-0001-6211-9099

[2] Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL). Alfenas, Minas Gerais (MG). Brasil (BR). E-mail: rogerio.lima@unifal-mg.edu.br ORCID: 0000-0002-1751-2913

[3] Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL). Alfenas, Minas Gerais (MG). Brasil (BR). E-mail: cris.silveira@unifal-mg.edu.br ORCID: 0000-0002-8427-7220

[4] Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL). Alfenas, Minas Gerais (MG). Brasil (BR). E-mail: mariareginamartinez@gmail.com ORCID: 0000-0001-6300-8980

[5] Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL). Alfenas, Minas Gerais (MG). Brasil (BR). E-mail: roberta.sanches@unifal-mg.edu.br ORCID: 0000-0001-7557-5560

 

Como citar: Oliveira LB, Lima RS, Silveira CA, Martinez MR, Sanches RS. Transição de carreira: percepção de enfermeiros que atuaram como técnicos de enfermagem. J. nurs. health. 2022;12(2):e2212221154. Disponível em: https://revistas.ufpel.edu.br/index.php/JONAH/article/view/4479