Apresentação Dossiê “Memórias, Patrimônios e Narrativas”

  • Cristiéle Santos de Souza UFPel
  • Isabel Cristina Bernal Vinasco

Resumo

Existem três tempos, disse Santo Agostinho no livro XI de suas Confissões, “o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. (...) O presente do passado é a memória; o presente do presente é a intuição direta; o presente do futuro é a esperança.” Assim também podem ser pensadas as relações entre memória, patrimônio e narrativa, uma vez que são fenômenos que adquirem sentido no presente, e mobilizam a percepção que se tem de passado e de futuro, seja como reconhecimento ou como promessa (RICOEUR, 2007). No mesmo sentido, a dimensão narrativa que envolve as noções de memória e de patrimônio lança luz sobre diferentes zonas de conflito e de reivindicações identitárias, manifestadas em lugares, discursos e celebrações. Da mesma forma, cabe lembrar que a memória também é construída por meio de narrativas, que constituem discursos e organizam experiências, de modo a dar sentido à relação que uma coletividade estabelece com o seu passado. Essa relação está presente não apenas naquilo que se diz do passado, mas nos lugares, bens, saberes e fazeres reconhecidos como patrimônios. Ainda que a noção de patrimônio, como herança, remonte a Antiguidade Clássica, é a sua dimensão política e suas interfaces sociais e culturais que interessam a esta discussão. De acordo com Josep Ballart Hernandez, o patrimônio é resultado de um ou mais processos de atribuição de valores socialmente construídos, em suas palavras: El valor es una cualidad añadida que los individuos atribuyen a ciertos objetos que los hacen merecedores de aprecio. Estamos, pues, ante un concepto relativo que aparece y desaparece en función de un mareo de referencias intelectuales, culturales, históricas y psicológicas, que varia según las personas, los grupos y la épocas (HERNÁNDEZ et al.1996, p. 215). Esses valores resultam, por sua vez, do conjunto de memórias compartilhadas por uma coletividade, bem como dos hábitos e costumes consolidados em suas narrativas, rituais e lugares de memória (NORA, 1993). Assim, quando se propõe a discussão em torno das relações estabelecidas entre memória, patrimônio e narrativa, o que se está realmente propondo é um olhar sobre a construção, a difusão e a consolidação desses valores, que, em última análise, refletem a sociedade que os reproduz. Nessa perspectiva, a memória é percebida não apenas como a capacidade de reconhecer e acumular uma lembrança, mas também como um processo de compartilhamento de representações sociais, as quais se manifestam de diferentes formas, desde o estabelecimento de cultos e práticas religiosas, até a superação de traumas e a reivindicação identitária. Dessa forma, como afirma Joel Candau (2012, p. 19), “Não há busca identitária sem memória e, inversamente, a busca memorial é sempre acompanhada de um sentimento de identidade”. A importância da narrativa como um elemento de coesão tanto nos processos de patrimonialização, quanto nas buscas memoriais se faz evidente nos artigos que compõem este dossiê, demonstrando que a narrativa não se restringe ao gesto do testemunho, mas está imbricada nas práticas sociais e nos costumes consolidados por elas. Afinal, como afirma Bruner (1997, p. 152) “nuestra experiencia de los asuntos humanos viene a tomar la forma de las narraciones que usamos para contar cosas sobre ellos”. Os artigos que compõem este dossiê discutem, cada um à sua maneira, as relações entre patrimônio, memória e narrativa. Podendo ser divididos em dois grupos: o primeiro, composto por artigos que discutem essas relações pelo viés da narrativa e dos seus desdobramentos como rituais e tradições; o segundo, composto por artigos que discutem a cultura material, expondo o modo como as coletividades se relacionam com as materialidades do seu passado.
Publicado
2020-10-14
Seção
Apresentações