Saúde, família, segurança: para uma gramática moral do debate sobre cannabis medicinal
Resumo
O presente texto explora o debate sobre a regulamentação do uso medicinal da cannabis inspirado analiticamente pela formulação teórica de Luc Boltanski. Como é sabido, Luc Boltanski propõe uma sociologia das capacidades críticas, focada em situações de conflito onde os agentes precisam justificar suas ações, permitindo que os regimes de justificação se tornem evidentes (Boltanski e Thévenot, 2007; 2020). Essa abordagem contrasta com a sociologia crítica de Bourdieu, enfatizando as competências críticas dos atores em suas situações práticas. Boltanski propõe uma sociologia pragmática da crítica, onde as "críticas ordinárias" podem ser analisadas moralmente, permitindo identificar os eixos morais fundamentais nas disputas sociais. Esses valores são mobilizados para justificar ou contestar ações e fundamentar instituições sociais, contribuindo para a estabilização ou transformação das interações sociais. Boltanski desenvolveu a ideia de citès, ou ordens morais, que emergem em conflitos não-violentos, permitindo a justificação das ações dos atores. Aqui, essa abordagem inspira uma análise aplicada ao debate contemporâneo sobre a cannabis medicinal no Brasil, revelando os regimes morais envolvidos na regulamentação e uso da planta. Desse modo, identifica-se uma transformação no debate sobre a cannabis medicinal, especialmente a partir do reconhecimento público de seus benefícios terapêuticos. O Projeto de Lei (PL) 399/2015, proposto pelo então deputado Fábio Mittidieri, visa alterar a Lei 11.343/2006 para regulamentar diversos usos da cannabis. Esse PL gerou posicionamentos polarizados e intensos, e as controvérsias abordaram questões sobre a qualificação da planta, seus impactos na saúde, segurança pública e família, e as propriedades benéficas e maléficas de suas substâncias. A criação de uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados, destinada a debater o PL 399/2015, intensificou essa discussão. Essa comissão, presidida pelo deputado Paulo Teixeira e relatada por Luciano Ducci, atuou como um fórum de debates acirrados sobre a cannabis, absorvendo e provocando uma diversidade de opiniões e argumentos. O estudo utiliza transcrições das reuniões da Comissão Especial do PL 399/2015, especialmente as audiências públicas de 2019 e 2020, além de uma Comissão Geral em maio de 2021. Essas audiências contaram com a participação de cientistas, médicos e representantes de associações de cannabis terapêutica, debatendo a matéria. Além das transcrições, o estudo considera manifestos, notas e documentos de grupos da sociedade civil e órgãos públicos, que explicitam seus posicionamentos sobre o PL. Esses documentos incluem cartilhas, moções de repúdio e apoio, manifestos de sociedades científicas e conselhos profissionais, e notas de associações canábicas e frentes parlamentares. A pesquisa destaca duas perspectivas opostas no debate: de um lado, a cannabis é vista como associada ao desvio comportamental, crime e dependência, enquanto, de outro, é reconhecida por seus potenciais medicinais e envolvimento em escritos sagrados e pesquisas científicas. Essa última visão ressalta o preconceito e a violência racial associados à proibição da planta, revelando aspectos de racismo, geopolítica, encarceramento em massa e perseguição a tradições culturais. Os contrários ao PL geralmente associam a cannabis ao crime, desvio e dependência, enfatizando riscos à saúde pública e segurança. Já os favoráveis destacam os benefícios terapêuticos, o direito à saúde, a dignidade, os cuidados familiares e a necessidade de regulamentação para uso medicinal. O estudo visa identificar eixos cognitivos subjacentes ao debate, analisando como esses eixos são geridos publicamente. A análise pretende fornecer um contorno moral ao debate, considerando os aspectos gerais e específicos das posições dos diferentes atores envolvidos na discussão sobre a cannabis medicinal no Brasil. A pesquisa identifica três citès principais no debate sobre a cannabis medicinal: A citè da saúde foca nos aspectos maléficos ou benéficos da planta e seus derivados para a saúde. Tradicionalmente associada à dependência e drogadição, a cannabis passou por uma reviravolta ao ser vinculada a propósitos medicinais benéficos. Essa transformação redefine o repertório de objetos e sujeitos, passando de um corpo intoxicado para um corpo que se restabelece com o uso medicinal da cannabis. O debate se desloca da crítica liberal ao proibicionismo para uma crítica ao impedimento que a regulação proibicionista impõe às famílias que buscam cuidar dos seus entes queridos. A mobilização da saúde ressitua a cannabis como uma questão de saúde pública, ultrapassando os termos do movimento liberal antiproibicionista das décadas passadas. A citè da família valoriza a harmonia e o cuidado dentro das relações familiares. Testemunhos pessoais sobre o uso da cannabis medicinal para tratar condições de saúde de familiares são centrais. A empatia e o cuidado são enfatizados, deslocando a imagem de filhos em conflito com a família para uma visão de pais e cuidadores que buscam alívio para seus entes queridos. Mulheres, especialmente mães, se destacam como figuras centrais, legitimando suas demandas pela legalização da cannabis medicinal e seus atos de contravenção penal. Esse deslocamento da crítica liberal coloca a questão da cannabis medicinal dentro de um contexto de necessidade e cuidado familiar, desafiando o arranjo penal vigente. Na citè da segurança, os valores fundamentais são a busca pela estabilidade e proteção contra ameaças. No debate sobre a cannabis medicinal, isso inclui a segurança pública e a segurança farmacológica. A segurança pública tradicionalmente vincula drogas ao crime organizado, legitimando práticas repressivas. No entanto, a medicalização da cannabis desloca a discussão para a segurança sanitária e farmacológica, enfatizando a qualidade e segurança dos medicamentos. Esse duplo sentido da segurança reflete a transição da semântica proibicionista para uma visão de segurança mais ampla e inclusiva, integrando aspectos de saúde pública e individual. As citès revelam a complexidade do regime de justificação no debate sobre a cannabis medicinal. A interseccionalidade moral das citès mostra que múltiplas ordens de valor operam conjuntamente para conformar ou transformar regimes morais. A desobediência civil organizada emerge como uma resposta à injustiça das leis proibicionistas, com um foco moral na saúde e na família, desafiando a autoridade estatal e promovendo uma nova configuração política. A análise destaca como diferentes grupos mobilizam, apesar das posições antagônicas, ordens de grandeza que se aproximam em determinados aspectos e se afastam em outros. Isso reflete uma pluralidade de ordens de valor operando em reforço mútuo, deslocando a discussão interseccional da identidade e discriminação para a moralidade dos argumentos e justificativas. Esses processos de saturação de ordens de justificação legitimam um movimento de desobediência civil, justificando a violação das leis atuais como uma resposta à sua injustiça. Esse movimento é particularmente forte no contexto da cannabis medicinal, onde a configuração saúde/família legitima a desobediência ativa às regulamentações proibicionistas. Mesmo movimentos mais tradicionais do antiproibicionismo, como a Marcha da Maconha, adotaram uma postura de respeito – parcial – às leis, sinalizando a força moral da configuração saúde/família no novo contexto. Desse modo, a pesquisa sinaliza que os processos de transformação social e de lutas políticas por movimentos progressistas passa por uma luta sobre concepções de instituições tradicionais (a exemplo da família) que ampliam o potencial transformativo de práticas e experiências críticas no âmbito da sociedade. Referências BOLTANSKI, L.; THÉVENOT, L. A Sociologia da capacidade crítica. Antropolítica - Revista Contemporânea de Antropologia, v. 23, p. 121-144, 2007. Disponível em: < https://drive.google.com/file/d/1b-0qdsb5qkJt94X02DanhuL9vxuZRr87/view >. ______. A Justificação: sobre as economias da grandeza. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2020.Downloads
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Publicado
2025-03-06
Seção
Dossiê - Teoria crítica e pragmatismo
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