Em seus primórdios, a teoria crítica de matriz frankfurtiana e o pragmatismo norte americano foram muito pouco interessados um no outro. Ainda que ambos tenham como pano de fundo a história filosófica do idealismo alemão, de Kant e de Hegel, prevaleceu o desinteresse ou a crítica aberta e, talvez, uma boa dose de mal-entendidos. Quando se vê em retrospectiva, há, no entanto, um solo comum no que diz respeito a questões epistemológicas e teóricas, em especial, na crítica ao cartesianismo e ao positivismo, no interesse em vincular a crítica teórica a uma prática social transformadora ou mesmo na delicada relação entre a interpretação de tendências de desenvolvimento históricas imanentes e a imaginação transcendente criadora. Guardadas as diferenças, é possível pensar que as tensões que separam os trabalhos hoje clássicos de C. S. Peirce, William James, John Dewey e G. H. Mead, dos escritos de T. W. Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse, também permitem um amplo espaço de diálogo e colaboração, que vem sendo trilhado em busca de novos desenvolvimentos no campo da teoria social e política.
A mudança na atitude recíproca deve-se em boa medida à recepção de Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas, ainda na década de 1960, ao trabalho de Peirce, favorecendo um debate mais amplo sobre a contribuição pragmatista à filosofia alemã. Na década seguinte, a crítica de Habermas às filosofias da consciência, ao fundacionalismo epistemológico, bem como sua recepção da teoria da intersubjetividade em Mead, criaram um amplo espaço de colaboração e debate entre os dois campos teóricos. Seus debates com Richard Bernstein e depois com Richard Rorty sobre a importância da linguagem e da democracia são um ponto alto dessa história. O interesse crescente da teoria crítica no tema da democracia e em diminuir a distância entre a crítica teórica e as múltiplas formas de prática ou de ação crítica motivou e ainda motiva outro conjunto amplo de discussões, envolvendo outros atores. O ramo francês do pragmatismo, cuja história difere da norte-americana, tem nesse tema especial importância, a partir da contribuição de Luc Boltanski e Laurent Thévenot. Na Alemanha, Axel Honneth é parte importante desse debate, por seu diálogo com os franceses, por sua apropriação de Mead em Luta por reconhecimento e por seu trabalho com os temas da democracia e da cooperação a partir de John Dewey.
Mais recentemente, o interesse tem se renovado nos estudos de Rahel Jaeggi, Rainer Forst ou Robin Celikates, que exploram aspectos distintos das relações entre crítica, justificação, práticas sociais e formas de aprendizado social para pensar as dinâmicas políticas e culturais das crises e mudanças sociais contemporâneas. Por outro lado, tendo em vista a crise ecológica, tem ocorrido esforços no sentido de articular contribuições da teoria crítica e do pragmatismo que desenvolvem a perspectiva hegeliana sobre a “segunda natureza” no sentido de conceber um “naturalismo crítico” (cf. proposta recente de Federica Gregoratto, Heikki Ikäheimo, Emmanuel Renault, Arvi Särkelä e Italo Testa) que leve em conta a dimensão natural no âmbito da ontologia social.
Há também aproximações no que diz respeito ao debate metodológico, especialmente com a centralidade que a noção de “reconstrução” ocupa na elaboração de teorias críticas que trabalham com elementos imanentes e transcendentes em sua estratégia de investigação e de justificação. Teorias reconstrutivas procuram identificar potenciais de transformação e aprendizado existentes nas práticas sociais que encontram-se obstruídos ou reprimidos em conjunturas institucionais e históricas determinadas.
O dossiê que propomos pretende discutir as tensões e as possibilidades abertas pelo diálogo entre as duas grandes tradições no campo da teoria social e política. Após um caminho já significativo, podemos nos perguntar em que medida essa combinação seria capaz de orientar um programa de pesquisa mais amplo e consistente para a compreensão de problemas do presente.
Queremos entender como a exploração conjunta dessas linhagens nos ajuda a entender questões tais como:
- quais os pontos de apoio filosóficos e metodológicos de uma teoria crítica da sociedade?
- quais as relações entre as capacidades críticas de agentes e movimentos sociais e as ambições teóricas e sistemáticas de cientistas sociais e filósofos?
- qual o potencial transformativo de práticas e experiências críticas em domínios sociais diversos, tais como a arte, a política, o trabalho ou a ciência?
- que vantagens comparativas, impasses e/ou fertilizações mútuas podem ser trabalhadas a partir dessas duas grandes tradições?
- de que forma conceber a relação entre natureza e sociedade no quadro de formas de vida? Isto é, entre necessidades, impulsos e forças ou agências naturais, de um lado, e práticas, normas e processos sócio-culturais de outro?
Aceitaremos artigos que trabalhem essas questões a partir de estudos teóricos apoiados na bibliografia existente e/ou em objetos empíricos, que venham de inscrições disciplinares na sociologia e na filosofia, bem como no campo mais amplo das Humanidades.
Os artigos serão selecionados a partir do envio de um resumo expandido (até 1500 palavras) que deve conter obrigatoriamente o problema de investigação, o argumento proposto e as principais referências bibliográficas. Após a aprovação das propostas, os trabalhos completos serão submetidos normalmente ao processo de revisão por pares, de acordo com o calendário a seguir.